Querido Pai Natal, será que existes mesmo?
A fantasia faz parte do desenvolvimento, assim como, aos poucos, perceber que a fantasia não passa disso mesmo, também faz parte.
O tema não é consensual, mas não vejo problema em que as crianças acreditem no Pai Natal, nem que os adultos alimentem essa fantasia, até a uma certa idade. E como fazer a transição? Como ajudar a criança a lidar com a eventual desilusão e a transformar esta fantasia noutra coisa tão boa ou melhor?
Lembro-me de um menino de 8 anos, que veio à consulta de pedopsiquiatria por agressão física dirigida à mãe. Quando tentei perceber o que tinha acontecido, a mãe contou-me que o episódio sucedeu depois de o filho ter descoberto que o Pai Natal afinal não existia. E como? Na escola, perante todos os colegas, o menino insistia que o Pai Natal existia porque a mãe lhe tinha confirmado isso na véspera quando ele lhe perguntou… e a mãe nunca mentia. Foi sujeito ao riso e ao gozo dos outros colegas, aguentou, mas quando chegou a casa, o que estava guardado saiu cá para fora numa explosão de fúria.
A fantasia faz parte do desenvolvimento, assim como, aos poucos, perceber que a fantasia não passa disso mesmo, também faz parte. Se acreditar no Pai Natal fosse assim tão mau e traumático — e partindo do pressuposto que os pais querem sempre o melhor para os seus filhos — não seriam os próprios, que outrora também acreditaram e se viram desiludidos, a introduzir este mito infantil.
Assim, embora a magia e a fantasia ligada ao Pai Natal possam ser cultivadas e preservadas nos primeiros anos de vida, quando a criança começa a fazer perguntas, deve-se responder com a verdade, adequada ao seu estado de desenvolvimento e ao que se presumir que esta já saiba, coisa que esteve longe de acontecer na história que acima partilhei. Pode até devolver-se a pergunta com um simples "o que te parece?" ou "o que tens pensado sobre isso?", iniciando a conversa com esse ponto de partida.
A propósito disto, faz sentido recuperar uma das expressões mais conhecidas de João dos Santos, um dos pioneiros da pedopsiquiatria em Portugal: "Se não sabe… porque é que pergunta?". O que ele queria dizer com isto é que quando uma criança faz uma pergunta, muitas vezes já suspeita da sua resposta, esperando encontrar no outro uma mera confirmação. Às vezes, pode não saber todos os meandros da resposta, mas ao fazer a pergunta quer dizer, sem dúvida, que já se debruçou o suficiente sobre o assunto para poder presumir uma resposta.
E como fazer esta transição? Do sonhado e imaginado para o real?
Se dúvidas há do fundo generoso e solidário do Pai Natal, talvez seja importante revermos a sua história. O Pai Natal surge a partir da história de São Nicolau, um santo conhecido pela sua generosidade, também padroeiro dos marinheiros, da cidade de Amesterdão e protetor das crianças.
São Nicolau nasceu numa família abastada de cristãos na Turquia. Ao saber da existência de uma família com três raparigas em que o pai não tinha dinheiro para lhes comprar o enxoval e, por isso, não as podia casar, fez aparecer, à vez, três sacos de moedas de ouro e prata na casa deles.
Quando ficou órfão, Nicolau decidiu viajar para a Terra Santa. No caminho, foram-lhe atribuídos diversos milagres. Decidiu depois ir viver para Mira e despojar-se de todos os seus bens, vivendo na pobreza. Até que o bispo de Mira morre e não há quem lhe suceda. Os anciãos da aldeia ficam com a tarefa de encontrar sucessor e decidem entregar a decisão nas mãos de Deus. O mais velho dos anciãos sonha que a primeira pessoa a entrar na Igreja no dia seguinte deveria suceder ao bispo e eis que aparece São Nicolau, que gostava de fazer as suas orações pela manhã.
São-lhe depois atribuídos mais milagres onde a generosidade, o cuidado pelo próximo e a compaixão estão muitas vezes presentes. Com esta história, fica fácil introduzir aos poucos alguns conceitos, como a esperança, a justiça e a solidariedade.
Muitos anos depois, uma poderosa estratégia de marketing de uma marca de refrigerantes que todos conhecem, transformou o São Nicolau no senhor de barbas brancas vestido de vermelho que conhecemos hoje.
E para aqueles que ainda acreditam e que escrevem extensas cartas com também extensas listas de presentes? Cada família gere as coisas da forma que entende. Como em quase tudo o que é relativo à parentalidade, não há certos e errados, mas uma hipótese é partilhar a lista pelos familiares, outra é logo à partida estipular o número de presentes, outra ainda, quando não se consegue evitar a avalanche, é ir dividindo os presentes por diversos dias, para que a criança vá conseguindo apreciar e valorizar cada um.
Aqui, será importante introduzir a noção de privilégio, fazendo a criança entender que nem todos os meninos têm a mesma sorte… E não, não é porque se portam mal, seja lá o que isso for. A quantidade de presentes não é proporcional ao seu merecimento e há muitos meninos que, embora exemplares, não têm a mesma sorte.
Esqueçamos então de um vez por todas o "se não te portas bem, o Pai Natal não te traz presentes!".
A todos um excelente Natal!
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.