Palmada educativa é algo que não existe
Não é possível garantir que foram ou que são as “tareias” que constroem pessoas de bem.
No âmbito da sua iniciativa no princípio de 2022, “Nem mais uma palmada”, o Instituto de Apoio à Criança desenvolveu um estudo, “Será que uma palmada resolve?”, sobre procedimentos adoptados no âmbito da acção educativa familiar. Responderam 1943 pessoas, 73% com filhos e 44% a trabalhar com crianças.
Olhemos para alguns dados já divulgados. Cerca de 30% dos inquiridos “ainda consideram poder usar-se castigos corporais” em situações como o não-cumprimento de regras ou limites definidos por familiares, a “má criação” ou a desobediência.
Regista-se que 81,7% defendem que nada justifica a utilização de castigos corporais, mas 4,8% referem que “os comportamentos desadequados e de desrespeito face a outros é uma justificação legítima para o seu uso”. Também 3,3% defenderam que só em situações de “último recurso” e raras se admitirão os castigos corporais.
Para além destes dados, parece pertinente referir que em 2021 foi divulgada uma investigação realizada pela Universidade de Xangai em que se estudou a eventual relação entre uma educação parental autoritária e o desenvolvimento dos filhos. Recorrendo a técnicas de electroencefalografia evidenciou-se, de forma fiável, atraso no desenvolvimento das funções cerebrais em comparação com outras crianças educadas através de estilos parentais menos autoritários.
Na abordagem a estas questões parece-nos mais adequado recorrer ao termo “parentalidade severa”, também usada na literatura, definida como o recurso regular ao gritar, bater ou outro tipo de comportamento coercivo, humilhação ou ameaças físicas e verbais como forma de punição.
Também uma referência a um trabalho desenvolvido pela Universidade de Pittsburgh nos EUA divulgado na Society for Research in Child Development, em 2017, “Harsh parenting predicts low educational attainment through increasing peer problems”: foram consideradas diferentes variáveis no seguimento de 1482 alunos durante nove anos e emergiu uma relação robusta entre a “parentalidade severa” e baixo rendimento escolar e problemas de comportamento nas crianças que vivenciaram essa experiência familiar.
A Academia Americana de Pediatria produziu, em 2018, um conjunto de orientações para a educação parental defendendo de forma muito assertiva que bater nas crianças, insultá-las, humilhá-las ou envergonhá-las são comportamentos a banir.
O Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto que acompanhou desde o nascimento um número muito significativo de crianças na área metropolitana do Porto, divulgou, em 2019, que 75% das crianças com 7 anos terão sido vítimas de agressão psicológica ou castigos corporais em contexto de educação familiar. Cerca de 10% sofreram agressões graves (como bater com cinto, com objecto contundente ou queimar) com frequência. As análises também evidenciaram consequências em termos de saúde, 58% das crianças apresentaram valores de inflamação elevados, cerca de duas vezes mais que entre crianças que não são vítimas de maus-tratos.
Finalmente, em termos de referências é fundamental recordar que o Código Penal Português estabelece desde 2007 no Art.º 152 a proibição dos “castigos corporais”.
Na intervenção que realizamos com pais, estas questões são abordadas com frequência sendo também recorrente que quando na imprensa surgem referências a comportamentos menos adequados de crianças ou adolescentes, se registam opiniões referindo uma alegada falência das famílias na definição de regras e limites nos comportamentos de crianças e adolescentes.
Parte destas intervenções vêm envolvidas em alusões ao facto de não se recorrer a umas “palmadas”, à “pedagogia do chinelo” ou a outras declinações no mesmo “timbre”, pois uns “tabefes” resolviam a situação. Parece-nos verdadeiramente interessante a tentativa de mitigação dos comportamentos recorrendo à velha ideia da “palmada educativa”.
As menções às dificuldades das famílias ou da escola na regulação dos comportamentos de crianças e adolescentes são justificáveis, obviamente, mas gerir essas dificuldades com base no bater parece-nos verdadeiramente preocupante para além da sua ineficácia.
Não é possível garantir que foram ou que são as “tareias” que constroem pessoas de bem. É difícil compreender que um qualquer comportamento de violência de natureza diversa dirigido a uma criança possa ser algo de educativo.
No entanto e dito tudo isto, também cremos que comportamentos inadequados ou incompetentes não expressam inequivocamente que os seus autores sejam pessoas más ou pais incompetentes.
Todos nós, alguma vez, teremos agido de uma forma menos apropriada com os nossos filhos e isso não nos transforma em pessoas más ou incompetentes, apenas significa que somos pessoas, que somos imperfeitos.
Nesta perspectiva, devemos ser cautelosos na diabolização definitiva de pais que numa situação eventualmente esporádica e de tensão, assumem um comportamento de que podem ser os primeiros a arrepender-se.
Sublinhamos que esta nota, não branqueadora ou desculpabilizante de nada, pode não ser particularmente simpática, mas a verdade é que cansam discursos de legitimação do efeito "educativo" da violência e outros comportamentos integrados na parentalidade severa dirigidos a crianças, como cansam os discursos demagógicos e, por vezes hipócritas, que clamam pela "crucificação" cega de uma pessoa, o outro que bate, mas são produzidos por gente desatenta ou mesmo autora ou apoiante doutros comportamentos dirigidos a miúdos tão indignos quanto a "palmada" ainda que menos visíveis.
A experiência mostra-nos que muitos pais desejam ou exprimem a necessidade de alguma ajuda ou orientação nestas questões e, felizmente, muitas instituições e muitas escolas desenvolvem iniciativas neste âmbito.
Como referimos, o quadro legal proíbe os castigos corporais a crianças. No entanto, facilmente as leis passam de imperativas a indicativas e, portanto, desrespeitadas. É crítico não esquecer que não estamos a falar sobre opiniões, estamos a falar sobre direitos.