O que é feito de António Braga, que tinha o sonho de fazer o Barca Velha e surpreendeu tudo e todos ao deixar a Sogrape depois de 15 anos de frutuosa ligação? O enólogo de Lisboa, há muito radicado a Norte, está a fazer o seu próprio vinho, em duas regiões, e quer com ele “contar histórias”. A do seu percurso e a história da mal-amada Mourisco (ou Marufo — como, aliás, reza a legislação actual). Dois vinhos que serão lançados no Outono de 2023.
Deixou a Sogrape depois da vindima de 2021 porque “queria fazer outras coisas”. E, com a ajuda de investidores, que foi encontrar em “áreas adjacentes” à produção de vinho, está a fazer essas outras coisas, seguindo o modelo do enólogo-produtor. “Aquele que não tem uma quinta, não tem uma adega, mas tem uma marca e se as coisas correrem bem pode construir daí para trás.” É o chamado não dar um passo maior do que as pernas.
A marca – o seu nome – é como se já existisse, porque não há quem não o conheça no sector. E António Braga vai estrear-se com um Alvarinho feito na adega de Anselmo Mendes, em Melgaço, e com uvas do amigo, da Quinta da Torre, e uma Mourisco (uma, porque, como já explicámos aqui, as castas são filhas de uma mãe e de um pai e a Mourisco é mãe) de uma vinha especial, com uns 40 anos, a 550 metros de altitude, perto do Pocinho, numa freguesia chamada Lousa, no Douro Superior. Referências que quer colocar, ele próprio, em garrafeiras e restaurantes especializados.
O primeiro vinho explica o seu “salto para a independência”. O segundo conta “a história de uma casta antiga do Douro, plantada para entrar no lote do vinho do Porto, por ser produtiva, mas de que ninguém gosta e que foi um pouco proscrita nas adegas”. “O que foi o Mourisco e porque é que já não o é? É mesmo má ou estava só mal-adaptada em termos de estilo?”
Segundo o enólogo agora produtor, é a segunda explicação. O Mourisco “é todo ele elegância”, mas não dá a cor e a concentração do estilo imposto nos anos 1990. “Hoje, podemos fazer tudo. O mercado é muito mais flexível e está muito mais aberto a conhecer outros estilos de vinho”, refere, para sublinhar logo de seguida que “elegância não é simplicidade”.
Apesar de a maioria dos enólogos não lhe atribuir valor enológico, ainda vai havendo Mourisco na região. Nas melhores vinhas velhas, será residual, dizem-nos, mas esta casta autóctone está em muitas parcelas plantadas no pós-filoxera. Uma explicação estará no facto de os viticultores durienses se terem apercebido da resiliência desta videira durante a praga que dizimou vinhas em toda a Europa e também em Portugal. Quando a crise passou, e enquanto repensavam a viticultura do futuro, acharam por bem plantá-la para o futuro. Hoje, começam algumas vozes a falar da casta (há quem diga que tem a virtude de ser um vinho fácil e, por isso, um excelente vinho de iniciação) e há pelo menos mais um produtor com um vinho de Mourisco no Douro (Márcio Lopes, com Proibido Marufo 2020).
Este Mourisco (e nós provámo-lo na adega da Grape to Bottle, a incubadora de produtores de vinho de Santa Marta de Penaguião, onde António encontrou os parceiros ideais para se lançar em nome próprio) é original e parece estar a evoluir no sentido que Braga projectou. “É muito gastronómico”. Sim, conseguimos perceber isso. E “a altitude [da vinha] ajuda ao nervo, dá-lhe tensão”. Idem.
E o Alvarinho? “É a minha interpretação [daquele terroir].” “Quando não tiver nada para contar, conto a minha história.” E essa história escreve-se para já com uvas de quatro parcelas durienses (nas zonas de Armamar, Pinhão, Pocinho e Ferradosa) e com as tais uvas de Anselmo Mendes, nos Vinhos Verdes. Tudo “em parceria”, no plano de negócios que desenhou, não está contemplada a aquisição de vinhas.
“O meu projecto é muito isto de sermos um país cheio de tradição, em que a tradição se tornou tão perniciosa que nos esquecemos de olhar para os detalhes, para histórias esquecidas ou que não foram contadas.” O vinho “é um veículo incrível para contar histórias” e a melhor recordação que um estrangeiro pode levar do nosso país, diz, não é como “um postal que levamos e guardamos na gaveta”.
Enólogo-produtor-gestor
O nome de António Braga poderá bem vender “a primeira garrafa”. Caberá à “enologia vender a segunda” e, para bem do enólogo-gestor, a terceira e a quarta. “A qualidade e a consistência” é que fazem uma marca, como Braga tão bem aprendeu nos seus anos de Sogrape.
Outra aprendizagem, mas do último ano, foi perceber que os vinhos que faz agora e os que fez no passado são todos seus. “Antes pensava: quando eu estiver a fazer o meu vinho é que vai ser diferente. Mas, para dizer a verdade, não sinto estes vinhos mais meus do que os outros. No sentido de os fazer como eu queria, sim. De resto, não.”
Os seus dois primeiros vinhos – 7000 garrafas – andarão num patamar de preço “entre os 20 e os 40 euros” a garrafa. Na calha, e na adega, há já um segundo tinto do Douro, “uma proposta convencional, mas convencional boa”, com Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinto Cão, para lançar mais tarde. O futuro poderá levar o enólogo, que gosta de terroirs de influência atlântica, a “fazer coisas” noutras regiões.
De Lisboa para o Douro
António também é consultor de outros produtores, nomeadamente da Casa Relvas e da Abegoaria, no Alentejo. “É a parte prática”, mas, afiança, nunca teria deixado o emprego de sonho (há 20 anos, o seu “sonho” era trabalhar na Sogrape) para ser apenas consultor. “Mas gosto muito de fazer essa parte, de conhecer outras organizações e de poder acrescentar valor a essas organizações.” Supõe-se que será natural.
Vem de uma “família de empreendedores” – cuja única ligação ao vinho é a avó paterna, um dos muitos sócios da empresa familiar Quinta do Romeu, fundada por Clemente Menéres, em 1874, em Trás-os-Montes – e já depois de tirar Engenharia Agro-industrial fez um MBA (Master of Business Administration), experiência a que acrescentou várias camadas nos últimos cinco anos de Sogrape.
Os primeiros dez trabalhou na empresa como enólogo e aprendeu “muito” com Luís Sottomayor e toda a equipa. Pôde, efectivamente, fazer o Barca Velha, mas também fez essa bandeira nacional chamada Mateus Rosé e o popular Gazela, produções que o entusiasmavam pela tal “consistência” que vende segundas garrafas. Entre 2016 e 2021, dirigiu a equipa de enologia – cerca de 60 técnicos – para o universo Sogrape além Douro e Alentejo. Liderou, por exemplo, o processo de integração na empresa da Quinta da Romeira, em Bucelas. E, pelo caminho, correu o mundo onde a Sogrape faz vinho, foi à Argentina, à Nova Zelândia e ao Chile.
A região demarcada mais antiga do mundo, descobriu-a antes, corria o ano de "2003, talvez", quando decidiu, numa visita de estudo, ainda no Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa, que queria mudar-se para a região. Viveu ali três anos, enquanto trabalhava na CARM. “Quando cheguei ao Douro, soube que queria fazer vinho aqui.”