Natal, tempo de amor ou “outra vez em casa da tua mãe”...
Já não sou eu com a minha família, mas outra família, composta por tantas personalidades e humores, difíceis de gerir debaixo de um só tecto.
Milene tem finalmente a família com a qual sonhou. Um marido amoroso, duas meninas e um menino, mas Milene tem saudades do Natal de quando era pequena — aos seus olhos, era só ela, os pais e os irmãos. Naquela época, a sua única preocupação era saber se ia receber mais um conjunto de Pinypon ou uma Barbie verdadeira.
A mãe sempre lhe pareceu nervosa ao fogão, enquanto virava as filhoses no óleo, mas os nervos, nunca destruíram o título de melhor anfitriã. “Oh, já chegaram! Que bom!” O sorriso amarelo da mãe denunciava que a sogra tinha entrado. A sogra que nunca tinha gostado da nora, pois parecia-lhe demasiado provocante para a época. Mas, para Milene, os pais estavam bem e ela era imensamente feliz.
Já crescida, as preocupações, que outrora talvez tenha ignorado, são agora as suas dores de cabeça.
As irmãs casaram, têm filhos adoráveis e, por vezes, insuportáveis. São adolescentes que aguardam receber prendas 'fixes' ou dinheiro. E se for roupa?
— Ó tia, tu tens um péssimo gosto.
— Se eu dissesse isso na cara da minha tia, perante a camisola com a gola bordada que picava, levava uma lamparina na certa —, repreende, a sorrir, Milene.
Organizar Natais, quem quer? Em casa de quem? Quem vai às compras? Quem lava a loiça? Quem confecciona as refeições? Com os meus pais ou com os teus? Dia 24, Milene vai passar o Natal com a sogra? A mesma sogra que não vai à bola com a cara dela? E Milene deixa os seus pais adoráveis? Vai com o marido e os filhos dormir a casa da sogra, que fica a 300 quilómetros de distância?
“Não haverá sexo por estes dias. Não vou acordar os pais dele. Não há paciência! Não vou comer as filhoses da minha mãe e também não vou comer... Calma, é preciso calma. E os meus filhos? Vão para onde eu for. Eles estão noutra, tal como eu estava”, diz para os seus botões.
E, mais uma vez, tenta articular uma solução, já recusada pelo marido. “Isso não faz sentido nenhum, cada um passar com a sua família, foi para isso que nos casámos? E onde está o espírito natalício?”, questiona o companheiro.
A idade adulta traz essas mudanças nas festas de família. “Já não sou eu com a minha família, mas outra família, composta por tantas personalidades e humores, difíceis de gerir debaixo de um só tecto”, reflete.
À mesa é preciso respirar fundo. O cunhado que vota na extrema-direita; o tio que insiste em perguntar ao Guilherme quando é que leva uma namorada lá a casa, apesar de as fotos no Instagram mostrarem que o rapaz já tem namorado; a avó que corrige a mãe, que corrige o filho que engole demasiados Ferrero Rocher.
Sentada à lareira, Milene envia uma mensagem a Joana, a melhor amiga:
“Já não é o primeiro Natal longe da minha família. Aqui, continuam a não valorizar o Natal... Nem almoçam! Comem só qualquer coisa... Em casa dos meus pais, o almoço de dia 24 era já um banquete, sem carne, mas um repasto bem servido. Passei 27 anos com o meu pai a fazer-me filetes com molho de marisco porque eu não gosto de bacalhau. À mesa dos meus sogros, esse cuidado não existe. Que saudade dos Natais, em que éramos só nós... 'Quem quer ir à missa?' Mas não íamos todos? Os meus pais sempre nos levaram à Missa do Galo, altura em que a liturgia acabava com um tabefe distribuído por cada um, por nos rirmos da senhora que desafinava ao cantar o salmo.”
As recordações daquela noite fazem Milene soltar uma gargalhada, mas ao levantar a cabeça constata que todos os outros têm os olhos fixos nos telefones.
A magia do Natal acaba com a idade adulta? Estaremos condenados ao isolamento? É cansativo andarmos de um lado para o outro, na estrada, nos dias festivos, mas qual é a solução? Pacificar e relativizar, porque “saudade” será o termo certo para aplicar a um tempo que não volta. Por isso, há que aceitar, respirar fundo e tentar viver o verdadeiro espírito de paz do Natal. Milene sorri ao olhar para a sogra que desembrulha o presente e lhe diz: “Só tu é que me dás bons perfumes!”
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.