Se pudéssemos mergulhar nos mais profundos pensamentos de Gianni Infantino – e talvez nem seja preciso irmos aos desejos mais secretos –, provavelmente saberíamos que o presidente da FIFA conseguiu o que mais queria quando acordou nesta quarta-feira e orou, sentado na cama de um qualquer hotel de luxo em Doha. Lionel Messi e Kylian Mbappé vão defrontar-se na final do Mundial 2022.

No belíssimo estádio Al Bayt, em Doha, a França garantiu nesta quarta-feira a presença no jogo decisivo ao eliminar Marrocos (2-0), um desfecho que é uma vitória dupla para a FIFA. Não só consegue a final “génio vs génio” em Lusail como evita um Argentina-Marrocos, que teria potencial para ser, futebolisticamente, das finais mais aborrecidas da história do Campeonato do Mundo.

Marrocos não vai tornar-se a primeira selecção de África a estar a 90 minutos de ser campeã do mundo, mas o que já foi feito até aqui é muito acima do que o planeta esperava – e talvez nem os próprios acreditassem num desempenho destes, deitando abaixo Espanha e Portugal.

A selecção de Marrocos defende como, onde e sempre que puder, esperando que isso a leve ao sucesso. Até ver, estava a resultar. Num total paradoxo linguístico, era um segredo que todos conheciam. O problema era desvendá-lo – até chegarem os gauleses.

Marrocos alterou a base

Após o jogo com a selecção portuguesa, escrevemos que Marrocos já era uma das selecções que melhor defendem não neste Mundial, mas na história dos Mundiais.

Nesta quarta-feira, isso ficou semi-provado. Ou então simplesmente não valia isso tudo e o equívoco foi nosso, pela falta de engenho espanhol e português.

O certo é que, quando foi fiel ao que tem treinado, a equipa esteve relativamente confortável no jogo. O problema é que enquanto quis “inventar” deixou a final fugir-lhe.

Expliquemos. O início deste jogo trouxe várias novidades. Primeiro, no sistema táctico de Marrocos, que decidiu trazer pela primeira vez três centrais, algo que só tinha feito em momentos específicos dos jogos – nunca como plano inicial.

A ideia deveria ser prevenir os movimentos franceses com três jogadores em espaços interiores: Giroud, Griezmann e o ala oposto ao da bola – Mbappé ou Dembélé.

A segunda novidade é que os africanos sofreram um golo marcado por um adversário (o único sofrido tinha sido autogolo) e viram-se a perder pela primeira vez neste Mundial.

Curiosamente, tratou-se de uma má abordagem defensiva, no dia de estreia de um sistema pouco rotinado. Aos 5’, Varane colocou uma bola vertical para Griezmann e Yamiq, talvez sentindo as “costas largas” por haver um defensor a mais do que era habitual, quis abordar o lance em antecipação – coisa que os marroquinos fazem pouco – e falhou o corte.

Com o bloco desmontado, Griezmann teve espaço para ir para a área e o lance, depois de ressaltos, acabou nos pés de Hernández, que finalizou ao segundo poste.

Aos 17’, nova má abordagem do trio marroquino. Desta vez foi Dari, que deixou a bola sobrevoar o seu corpo e isolar Giroud, que disparou ao poste.

Aos 22’, a lesão de Saiss obrigou Marrocos a mexer e o seleccionador aproveitou a oportunidade para regressar ao sistema habitual, que a novidade estava a correr mal. E não será coincidência que foi nesse momento, com três médios, que a equipa começou a encontrar o espaço entre linhas.

Quando Amrabat ficava na posição 6, nada acontecia. Quando o médio dava uns passos em frente e tentava progredir, Marrocos tinha três médios contra Fofana e Tchouaméni, porque Griezmann nem sempre acompanhou a preceito.

Ounahi teve um remate perigoso, e só más definições em contra-ataque, explorando a zona central, impediram Marrocos de criar mais perigo.

Já os franceses tinham o que queriam: Marrocos a precisar de se expor e espaço para as “motos”. Mbappé criou um lance aos 36’, mal finalizado por Giroud.

Já perto do intervalo houve bola ao poste de Yamiq, numa “bicicleta” após um canto. Mas o golo não seria propriamente justo, já que os franceses foram mais perigosos.

Entrada forte

Na segunda parte, Marrocos entrou com o gás todo. Um balanceamento ofensivo despudorado que valeu muitos jogadores em zona de finalização e um trio de lances perigosos em menos de dez minutos – ainda que sem finalização. Ziyech, Hakimi e Boufal eram os homens dos desequilíbrios e a ideia era sempre a mesma: fazer dois contra um em Hernández e criarem espaço para um dos alas ganhar a linha e cruzar rasteiro – sempre sem consequência.

A equipa estava mais perigosa, mas o problema era a velha história da “manta”: se tapa de um lado, destapa do outro.

Foi o que viu Deschamps, percebendo que o espaço que havia para jogar – e que Mbappé estava a explorar – pedia mais um “ciclista”.

Thuram rendeu Giroud, Mbappé foi para a zona central e isso era uma dupla vantagem: ofensivamente, Thuram seria mais útil neste tipo de jogo do que Giroud e, sem bola, o extremo acabado de entrar seria bastante mais voluntarioso e rigoroso do que Mbappé vinha a ser – daí Hernández estar tão exposto desde o intervalo.

O jogo entrou, na última meia hora, num período “morno”. Marrocos queria (e tinha de) atacar, mas sabia que demasiado risco facilmente acabaria com o Mundial, assim Mbappé, Thuram ou Muani acelerassem campo fora.

E assim foi. Aos 79', Thuram começou a jogada, Mbappé complementou-a com dribles no meio de pernas magrebinas e, depois de ressaltos, Muani, acabado de entrar há poucos segundos, deu-lhe um final feliz. À jogada e aos franceses, que podem revalidar o título mundial.

Texto editado às 10h35 com a correcção de um erro identificado por leitores a propósito da revalidação de títulos mundiais.