Crónica de uma “cidade líquida”

Lisboa em dia de temporal e cheias provoca uma desconfortável sensação de cerco. Uma espécie de fatalidade que condiciona a liberdade e estimula a irritação das perguntas sem resposta.

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Na Lisboa das cheias, os mais pobres e frágeis são os que mais precisam de quebrar o cerco Guillermo Vidal

A linha dos táxis está entupida, as aplicações dos TVDE sobrecarregadas e inacessíveis, as filas na paragem dos autocarros são longas e incertas e nem as trotinetes que costumam abundar ao acaso na esquina do supermercado existem. Uma cidade como Lisboa em dia de temporal e cheias provoca uma imediata e desconfortável sensação de cerco. Uma espécie de fatalidade que condiciona a liberdade de movimentos, transtorna o quotidiano, deixa no ar um clima de privação e estimula a irritação das perguntas sem resposta. É isto uma capital europeia?

Ir a pé com a ameaça de chuva ou esperar pelo autocarro? Vinte minutos depois lá chega um 742, com espaço para acolher aí uma metade da fila até o motorista desfazer as esperanças de tantos com um sonoro “a porta vai fechar”. Nas três ou quatro paragens seguintes, a porta não abriria por falta de espaço e umas dezenas de corpos unidos no calor húmido do interior deixam-se ao abandono da resistência.

Tinham quebrado a condenação da espera ou do cerco. Ou pelo menos do cerco daquela rua da Ajuda. Não deixavam de ser vítimas da chuva e da falha das entidades públicas. Cada um entregue a si e aos seus problemas. “Ficar em casa” não é uma opção que aquelas pessoas, muitas imigrantes, tantas sem direito a “teletrabalho”, possam considerar.

Uma criança e uma mãe a falar uma língua do Leste contrariavam a atmosfera pesada com o seu ar de aparente normalidade. A criança ria, talvez por por causa da escola fechada. Ao lado, na parte mais elevada do corredor, uma mulher lamentava ter de incumprir a promessa de limpar “a outra parte” ainda hoje. Outra, apelava ao patrão ou patroa para compreender a causa da sua falha, embrulhando a súplica no número de horas extraordinárias que sempre fizera sem contestar. Uma idosa pergunta alto ao motorista se aquele “não era o 42”. Sim, era, mas uma rua cortada pela enchente obrigara a uma rota alternativa.

Nada melhor do que a cheia para a validar o conceito de “cidade líquida” com que o filósofo polaco Zygmunt Bauman caracterizou a nossa modernidade. Uma cidade onde tudo é efémero, onde a ordem da razão, da técnica e do colectivo se esfacelam perante a imposição de um falso livre arbítrio aos seus cidadãos. Escolher sem ter possibilidade de escolha, sentir que tudo é incerto, nos transportes, nas escolas ou nos túneis não liberta, oprime. Na Lisboa das cheias, os mais pobres e frágeis são os que mais precisam de quebrar o cerco.

No 742 ou já na rua, o drama de uma capital europeia que perde toda a sua solidez com uma bátega (por forte que seja) expõe-se. A infraestrutura e a organização que dá sentido à vida em comunidade colapsam. Se, como escreveram João Teixeira Lopes e Tânia Leão, “a cidade líquida [de Bauman] é uma distopia que ameaça concretizar-se nas nossas urbes”, em Lisboa esse signo do nosso tempo é particularmente nítido, mesmo que num sentido menos filosófico. Basta que chova.

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