Ragnar Axelsson retrata os povos do Árctico há 40 anos: “Há fotografias que já não é possível repetir. Foi-se”
Há 40 anos que fotografa o Ártico em “drástica mudança”. Enquanto os glaciares derretem, correm risco as comunidades e tradições. Axelsson, orador no festival Exodus em Aveiro, dá-lhes voz.
“O Grande Gelo está doente.” Todos os dias, Ragnar Axelsson cruzava-se com aquele homem quando ia ter com um grupo de caçadores de narvais e ursos polares em Thule (Qaanaaq), na Gronelândia. Todos os dias, o velho olhava o céu, farejava o ar, fitava o banco de gelo marinho de Ingelfieldfjord e falava-lhe numa língua que não entendia. Ao quinto dia, encontrou quem o traduzisse. “Algo está errado. Não deveria estar assim. O Grande Gelo está doente.” Ole falava-lhe “da Gronelândia, dos glaciares e das mudanças do clima”. Estávamos em 1987. “Foi o ponto de viragem. O momento em que percebi que tudo isto ia desaparecer e que tinha de documentá-lo”, recorda à Fugas.
Até então, Ragnar “queria apenas fotografar a vida dos caçadores” do Árctico. Queria “tirar uma boa fotografia”. Era esse o objectivo. “Tinha lido sobre os velhos heróis do Árctico que tinham ido ao Pólo Norte e achava tudo aquilo fascinante.” A partir daquele encontro, no entanto, “documentar uma vida em mudança”, a daquelas comunidades dos países do topo do globo, intrinsecamente interligadas ao clima e por ele também irremediavelmente alteradas, tornou-se um projecto de vida. “Descobri que o que tinha de fazer era dar-lhes voz.”
Ao longo dos últimos 40 anos, o fotojornalista islandês regressou inúmeras vezes aos diferentes países do Árctico. No dia anterior à entrevista com a Fugas, dias antes de fechar o ciclo de palestras de mais um Exodus Aveiro Fest, que decorre de sexta a domingo, Ragnar tinha estado a sobrevoar e fotografar os glaciares. É algo que faz com regularidade. “Num, dois, três, quatro anos vês muitas diferenças. Existem grandes mudanças nos glaciares, por isso pode existir uma ruptura a qualquer momento. Quero fazer fotografias do antes e do depois. Não sabemos quando vai acontecer, mas penso que será em breve”, conta, lembrando que, em alguns casos, “estão a recuar cerca de 100 metros por ano”. Põe duas imagens lado a lado na conversa, captadas na mesma altura do ano: “O campo estava totalmente congelado em 1985 e em 2015 era água, tinhas de ir vê-lo de barco.”
No livro Glaciares, publicado em 2018, Ragnar quis, por isso, fotografar “uma ode, um poema a todos os glaciares”, às suas fissuras, aos seus buracos, às texturas que neve, gelo e rocha vão desenhando na paisagem árida como se fossem pele de um animal que, hoje, sabemos ferido. “Tudo isto vai desaparecer em 150 ou 200 anos. Os cientistas dizem que, com o que já aconteceu na atmosfera, vão derreter”, vaticina. “É como um barco a navegar. Paramos o motor e ele continua a navegar por muitas milhas.”
“Ninguém estava a ouvi-los”
Viajar pelo Árctico, diz, é “ver o futuro acontecer à frente dos nossos olhos”. As paisagens mudam drasticamente à medida que os glaciares recuam e os mantos de gelo vão-se tornando cada vez mais finos. Com elas, não só os animais selvagens mas também as comunidades que ali vivem enfrentam enormes desafios à sobrevivência dos seus estilos de vida e tradições. É nelas, sobretudo, que se concentra o trabalho de Ragnar porque, defende, é dos três – paisagem, animais, pessoas – o vértice mais negligenciado, tantas vezes incompreendido, pela atenção internacional.
“É muito popular fotografar icebergues neste momento, mas eles vão continuar ali daqui a 500 ou 1000 anos, a flutuar”, aponta. “É muito fácil navegar à volta e tirar aquelas fotografias, que são bonitas e dizem muito. Mas não podemos esquecer as pessoas.” Se não mostrarmos como é a vida no Árctico, “quem vive no outro lado do planeta não vai saber nem se vai importar”. É preciso “documentar a vida das pessoas e estas alterações”, defende. Ouvi-las e reproduzir as histórias e as preocupações nas legendas das fotografias e nos livros. Tal como Ole, há muito que sentem a mudança chegar. “Ninguém estava a ouvi-los.”
Fotografar comunidades “demora mais tempo”, é mais caro, duro e difícil, lembra. É preciso ficar lá semanas, ganhar a confiança, sentir o frio. E as imagens de Ragnar Axelsson traduzem-no de uma forma sublime, a preto e branco. “Cresci numa sala de revelação. O meu pai deu-me uma câmara quando era novo e livros de arte. Como não sabia pintar, tinha de tirar fotografias. É o meu pincel, de certa forma”, diz. “Adorava aquele momento mágico em que a fotografia começa a surgir no revelador.” Ainda hoje defende que o preto e branco capta melhor “a atmosfera”, “as emoções”. Nas imagens de Ragnar sentimos as vergastadas da neve gelada e da violência do vento, o nevoeiro cerrado, a rudeza do ambiente na pele enregelada de quem nos olha da janela, do cimo de um trenó.
“A condição humana está interligada às alterações ambientais. É parte dessas mudanças e muito importante.” Não é só o gelo que derrete. São modos de vida e tradições únicas no mundo que desaparecem com ele. Desde que fotografava na Gronelândia, por exemplo, pelo menos 13 ou 14 vilas e aldeias “fecharam”, noutro caso a população de 600 pessoas caiu para metade num espaço de décadas. “As pessoas estão a mudar-se, [a vida nas] comunidades de caçadores está a torna-se mais difícil.” Com a diminuição do número de caçadores, desce também o número de cães que, tradicionalmente, puxam os trenós. “Há dez anos, havia cerca de 30 mil, hoje serão 11 mil”, compara.
O livro Heróis do Árctico, publicado em 2020, é uma homenagem a estes animais, que mantiveram os caçadores vivos “durante milhares de anos”. “Quando tudo terminava levam-nos simplesmente para casa.” Bichos “muito inteligentes”, “quase humanos”. Também o nome da editora que Ragnar criou recentemente porque diz “não ter tempo para andar de joelhos em frente a publicações que não entendem o que está a acontecer no planeta” é inspirado no cão Qerndu, um dos protagonistas do livro.
“Está a acontecer agora e ninguém o pode negar”
Na Gronelândia, “as gerações mais novas não querem ser caçadoras”. Na tundra siberiana, os filhos do povo Nennet já “vão à escola”, por isso é provável que muitos “não queiram viver numa tenda durante todo o ano, a mudar renas [entre pastagens]”, exemplifica. “Vai haver mudanças em todo o lado [no Árctico] e elas provavelmente iriam acontecer de qualquer forma, mas está tudo a acontecer muito depressa neste momento. E só parece acelerar.” Não são só as alterações que chegam com a globalização, com a exploração de outros interesses económicos e diferentes empregos, ou a maior escolarização na região. Há quem queira seguir o legado familiar, quem queira manter aquilo que fez a vida inteira e sinta que é cada vez mais difícil fazê-lo.
Dá o exemplo de Hjelmer, “um dos melhores caçadores de ursos polares do mundo”. “Caçam uns 35 por ano.” E antes que comece a indignar-se, Hjelmer – e Ragnar – querem mostrar-lhe como se vive naquela povoação remota da Gronelândia. Querem que sinta o frio, a sensação de se estar a congelar sob dezenas de graus negativos, horas a fio numa paisagem inóspita à procura de alimento para a família inteira, num breu de 24 horas nos meses de Inverno, a lutar pelas vidas se enfrentam uma tempestade. Querem lembrar que não existem lojas, supermercados com carne embalada pronta para fazer ao jantar. “Aqueles que atiram pedras, provavelmente deveriam olhar para si próprios.”
Numa das últimas visitas de Ragnar, o gelo estava tão fino que, numa saída de caça, tiveram de seguir no trenó durante horas. Se saltassem, arriscavam quebrar o gelo e cair na água gelada. Não tinham outra hipótese senão continuar até ser seguro descer do trenó para caçar, cada vez mais longe de casa e de segurança. Nesse dia, perguntou-lhe que desejo pediria se tivesse poderes para concretizar apenas um. Não seriam riquezas nem comodismos. “Disse sem hesitação: Dá-me 25 anos atrás no tempo, quando o gelo era seguro”, recorda.
“Uma parte daquilo que fotografei já não é possível fotografar de novo. Foi-se.” Mas, aos 64 anos, Ragnar Axelsson mantêm-se um optimista incorrigível. “Penso que há esperança para toda a gente. O mundo está a aquecer, mas aqueceu antes. Já foi mais frio e mais quente, os glaciares já foram maiores e mais pequenos.” A única diferença é que isso “está a acontecer agora e ninguém o pode negar”. “Se pudermos fazer alguma coisa em relação a isso, todos devíamos fazê-lo. Seria estúpido ignorá-lo.”
Enquanto a rapidez das mudanças não parece desacelerar, Ragnar fotografa, documenta, ouve, publica livros com as imagens e as palavras dos povos do Árctico. O próximo livro deverá sair daqui a dois ou três anos e pretende ser um retrato de todas as mudanças ao longo das últimas décadas nos oito países do Árctico. Já deveria ter saído, mas o regresso ao Pólo Norte tem sido constantemente adiado, assim como a terceira viagem à tundra siberiana, em suspenso devido à guerra.
“As pessoas, às vezes, não entendem o que está por trás do trabalho dos fotógrafos, dos jornalistas, e isso deixa-me muito triste. Mas acredito que haverá alguém que, daqui a 100 ou 150 anos, vai perceber que isto foi algo.” Que o testemunho, que o trabalho de uma vida e as vidas que retrata nos livros, as suas tradições e costumes, tem um valor incomensurável. E essa certeza basta-lhe para continuar.