O que há de novo no mundo das barricas? O seu uso com bom senso - e chega

Depois de anos de excesso de utilização de barricas novas de carvalho, os produtores optam por cascos de maior volume, maior número de utilizações dos mesmos e menor intensidade de tosta das aduelas.

Foto
Os produtores optam por cascos de maior volume, maior número de utilizações dos mesmos e menor intensidade de tosta das aduelas ADRIANO MIRANDA

Jorge Alves: “É a madeira que dá o carácter luxuriante e cosmopolita ao vinho.” Hamilton Reis: “O estágio dos vinhos em barricas novas significa que parte considerável do perfil desses vinhos passa a ser atribuído ao tanoeiro ou à floresta de origem das aduelas das barricas e não às castas, ao terroir de origem do vinho ou ao enólogo.” Jaime Quendera: “Diga lá o nome de um vinho de topo deste mundo que não tenha estagiado em barricas?” Ah, as barricas novas de carvalho e o vinho – uma zaragata sem fim, com teses para gente moderada, gente radical e gente que se está nas tintas para o assunto. Haverá novidades no mundo das tanoarias? Poucas.

O fundamental continua a ser a boa gestão das florestas (e em França é o Estado que manda no assunto e não as tanoarias), a secagem da madeira, a construção da barrica e os níveis de tosta das aduelas. Todavia, regista-se uma tendência para o aumento de volumetria dos cascos de estágio e a redução da intensidade da queima das aduelas. É certo que os mercados de países não produtores continuam a achar piada aos aromas de baunilha, caramelo, coco, especiarias variadas, torrefacção, chocolate e outras coisas que não fazem parte do vinho, mas os consumidores do velho mundo já torcem o nariz a receitas à laia de refrigerante. No fundo, o bom senso parece ser o melhor conselheiro nesta matéria.

Este não é um texto contra o uso barricas de estágio ou de fermentação de vinhos – os radicalismos não se recomendam , mas é impossível não registarmos que o sector do vinho abusou da madeira nova nos últimos 40 anos, arrastado pelas modas de algumas regiões de França e de Espanha e pelo mau gosto dos gurus americanos e ingleses que ditavam e ditam as regras do negócio.

Foto
As inovações técnicas nas tanoarias são mais ou menos escassas Fernando Veludo (Arquivo)

O uso da madeira na feitura do vinho é tão velho como a salve-rainha. Foi sempre recipiente de fermentação e de armazenamento. No processo de estágio, a madeira porosa permite a troca muito lenta de oxigénio com o vinho, coisa que contribui para o suavizar (em linguagem técnica diz-se polimerizar os taninos do vinho). Quando, a seguir à vindima, um vinho entra numa barrica, numa pipa ou num tonel, está turvo, bruto e adstringente. Meses ou anos depois estará límpido e macio. A madeira e o tempo têm essa função: tornar o vinho civilizadamente bebível.

A utilização de barricas de 225 litros acabou por ser uma medida padrão fomentada pelos burocratas ingleses (cada barrica vinda de França daria sempre 300 garrafas) e uma solução técnica e funcional de transporte dos cascos nos barcos. Isso no final do século XIX. Com o tempo, verificou-se que os vinhos que passavam em barricas novas de carvalho adquiriam aromas e sabores inusitados. E, a partir do final dos aos 70 do século passado, uma barrica deixou de ser apenas o recipiente para polimerizar os taninos do vinho. França liderou a revolução e Espanha, mais tarde, seguiu e abusou da receita. Se cheirarmos um Rioja novo às cegas, num copo escuro, não sabemos se estamos perante um vinho ou um Jameson - o whisky que estagia em cascos de carvalho americano ou francês.

E é aqui que bate o ponto. A utilização maciça de barricas de carvalho novo em todo o mundo (carvalho francês, americano, esloveno ou húngaro) acabou por padronizar os vinhos, em particular quando são de colheitas novas. Metemos ao nariz um copo de vinho que passou por carvalho novo e não sabemos se fomos convidados para uma prova de vinho ou para uma prova de barricas, apesar da lengalenga estafada da integração do vinho com a madeira (se se sente a madeira é porque, obviamente, a integração ainda vai a meio). E se tal efeito da madeira nova se dilui à medida que o tempo passa, isso exige tempo – por vezes uma década.

Foto
Os produtores portugueses optam por realçar a matriz dos vinhos nacionais face à concorrência Enric Vives-Rubio (Arquivo)

Vejamos um exemplo. Quando José Bento dos Santos lançou a primeira edição do célebre Quinta do Monte d'Oiro Homenagem a António Carqueijeiro, em 1999, o vinho chegou com 200% de madeira nova. Sim, passou por barricas novas duas vezes. Na altura, o vinho causou um bruá dos diabos (seguia a escola de Peter Sisseck com o famoso Pingus) e até teve a proeza de ficar em primeiro lugar numa prova ibérica, às cegas e em duas mãos, em que os jurados eram repartidos pelos dois países (o que lhes deve ter custado!). Então, apreciava-se esse perfil de vinhos.

Hoje, temos dúvidas. No dia do lançamento do vinho de homenagem, no Clube de Golfe da Bela Vista, em Lisboa, quase poderíamos descrever a floresta de origem das aduelas (só dava barrica), mas, cerca de 12 anos mais tarde, no restaurante A Confraria (Hotel York House), e à volta de um foie gras preparado por Nuno Diniz, o vinho estava fabuloso e não era a madeira que se destacava. Agora só dava vinho. Mas, lá está, foi necessário esperar muito tempo, coisa que, infelizmente, não está nos nossos hábitos. Sai uma colheita e bebemo-la logo. Ponto.

Três enólogos com visões diferentes

Perante os excessos, os produtores foram, aos poucos, corrigindo o tiro. Como? Prolongando a vida útil das barricas (passaram de três para quatro, cinco ou seis anos de uso), aumentando os volumes (de 250 para 300, 350, 400, 500 ou 600 litros) e escolhendo barricas com tostas mais suaves (com menor capacidade de marcar o vinho). Objectivo: deixar que a barrica faça o seu papel, mas sem comprometer a identidade do vinho. Isto é, sem comprometer a casta ou a região. Acompanhemos agora três enólogos que têm visões diferentes sobre esta matéria.

Para Jaime Quendera (Cooperativa de Santo Isidro de Pegões, Casa Ermelinda de Freitas e outros projectos), “isso do excesso da madeira é uma conversa de nicho, muito alimentada por críticos de vinhos, mas que depois choca com a realidade: a maioria dos consumidores quer vinhos com aromas e sabores de madeira, venham eles das barricas, das aduelas ou das aparas”. E é por isso que, todos os anos, o enólogo encomenda uma média de 1600 novas barricas só para as duas grandes casas onde trabalha. E nem lhe falem em aumentar o volume das barricas (marcam menos o vinho).

Foto
Depois de anos de excesso de utilização de barricas novas de carvalho, os produtores optam por cascos de maior volume, maior número de utilizações dos mesmos e menor intensidade de tosta das aduelas Manuel Roberto

“Se aquilo que eu quero é que os vinhos tenham as notas da madeira - bem integrada e respeitado sempre as castas - é evidente que o volume dos 225 é o que me interessa”. Em jeito de provocação, pergunta-se ao enólogo se esse carácter amadeirado é só uma questão de mercado ou, também, de gosto pessoal. “São as duas coisas. Diga lá o nome de um vinho de topo deste mundo que não tenha estagiado em barricas? Eu não conheço.”

Num registo mais moderado está Jorge Alves, enólogo da Quinta Nova, Taboadella e outros projectos pessoais, e que em Portugal representa três tanoarias da Borgonha. A sua tese resume bem o que se tem passado em Portugal: “Em tudo isso há sempre as questões de moda. Depois de algum excesso de extracção das barricas, verifica-se hoje que as adegas estão a mudar para volumes de barricas maiores. Quem usava barricas de 225 litros passou para barricas de 300 litros, quem usava 300 foi para 350 litros ou 400, e por aí fora.”

Por outro lado, temos uma nova tecnologia que deverá ser seguida pela generalidade das tanoarias. Trata-se da utilização de bolbos cerâmicos para a manipulação e para a queima das aduelas. Os diferentes níveis de queima das aduelas no interior das barricas (quanto mais queimadas, mais aromas transmitem ao vinho) são feitos com chama directa ou queima de madeira no interior. A utilização de um bolbo cerâmico, sem chama, torna a madeira menos intrusiva com o vinho. Logo, teremos menos baunilhas, caramelos, chocolate ou coco. “Por outro lado, essas barricas transmitem notas herbáceas interessantes. São mais suaves e mais doces”, refere Jorge Alves.

Mas independentemente do processo de queima, o enólogo do projecto Quanta Terra acha que um tinto sem estágio em madeira é um tinto coxo. “O vinho não é só fruta e terroir. É isso, sim, mas também a interpretação humana. É a madeira que dá o carácter luxuriante e cosmopolita ao vinho. É o tempero final que melhora o que já é bom.”

Numa posição diferente está Hamilton Reis, enólogo na Herdade do Mouchão e num projecto pessoal de vinhos feitos em talha. Não é que seja contra a madeira, mas, a dada altura, ficou com a sensação de que o perfil dos seus vinhos tinha de ser repartido com o tanoeiro. “Nada contra o tanoeiro, mas quando 30 ou 40% do perfil dos vinhos se deviam às barricas, alguma coisa não estava bem.”

A trabalhar hoje no Mouchão, Hamilton pode dar-se ao luxo de usar os tonéis mais famosos do país e de trabalhar num terroir único e numa empresa com uma cultura organizacional própria. Tonéis de cinco mil litros, cujos topos de madeiras exóticas (macacuaba e mogno) têm cerca de 120 anos (os corpos dos tonéis uns 70 anos). Como se imagina, tais tonéis não transmitem aromas e sabores aos vinhos, mas, ao longo um ciclo de três anos, a tal troca de oxigénio com o vinho é responsável pela manutenção do perfil rico e complexo da marca Mouchão – um perfil único que, lá está, nos desenjoa perante a padronização que vai pelo país e pelo mundo. Dir-se-á que o Mouchão é um caso à parte. Certo, mas não é único. Na Bairrada ou na Península de Setúbal também há produtores que continuam a estagiar grandes marcas em tonéis velhos.

Para um projecto pessoal, Hamilton Reis comprou recentemente quatro pipas velhas no Norte do país. Recuperou aduela por aduela e, no final, ficou com três pipas. E a partir de agora vai começar a estagiar vinhos nesses cascos velhos.

Felizmente que, nesta matéria, o mercado funciona e ninguém tem que impor o seu gosto aos outros. As inovações técnicas nas tanoarias são relativamente escassas (a maior preocupação é gerir os stocks florestais). O que se verifica, por parte dos produtores portugueses – obrigados a mostrar diferença no monstruoso lago de vinho em que se transformou o mundo – é realçar a matriz dos vinhos portugueses face à concorrência. E sim, para isso convém eliminar baunilhas, coco, chocolate, cafés e afins. Não devemos ser uma Maria-vai-com-as-outras.

Sugerir correcção
Comentar