FIFA e Qatar: o silêncio e a mordaça

Os protestos são necessários, porém não podem encerrar-se em si. É preciso cobrar sobretudo acções concretas dos nossos decisores políticos.

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EPA/Ali Haider

Não sendo grande adepto de futebol, sempre apreciei todo o contexto associado aos jogos das competições que envolvem as selecções nacionais. Lembro-me do meu pai, da minha família e dos meus amigos a ficarem entusiasmados, e mesmo eu, com a ideia de que “é desta que Portugal consegue” – um desejo vivido no campeonato europeu de futebol de 2016.

A ideia de mais um momento de confraternização leva-nos a esquecer os problemas do nosso dia-a-dia e, igualmente, alguns daqueles que assolam a nossa sociedade – homofobia, misoginia, ataques à liberdade de expressão e aos direitos humanos. Mas, quando a sede do mundial ocorre num país onde estas questões e problemas sucedem numa dimensão ainda mais grave, a ideia de convívio esmorece, desaparece, e um sentimento de aversão apenas cresce com os acontecimentos da actual competição.

São várias as violações aos direitos e as repressões cometidas à comunidade LGBTQIA+ e às mulheres no Qatar; soubemos das condições desumanas e da escravatura moderna dos trabalhadores imigrantes, que levaram a cerca de 6.500 mortes associadas à construção dos estádios. Todas as situações de desumanidade poderiam ser alvo de uma acção mais realista por parte da própria FIFA e dos vários governos, mas a apatia é real, a ponto de argumentarem que a competição não deve ser palco para se realizarem declarações políticas.

Ainda a competição não tinha começado, os protestos ganhavam forma, como fez a equipa norueguesa nas eliminatórias europeias, quando jogadores vestiram t‑shirts com palavras de ordem – “direitos humanos, dentro e fora de campo” –, facto suficiente para a selecção da Noruega ter sido ameaçada pela FIFA de ser banida do mundial de 2026, numa antevisão de como seria o ambiente da actual edição.

Na sua acção mais recente, a federação internacional proibiu que os capitães de selecções como Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Holanda, País de Gales, Dinamarca e Suíça usassem a braçadeira “One Love “– uma iniciativa de apoio à comunidade LGBTQIA+, de fomento à inclusão e à diversidade –, ameaçando punir com o cartão amarelo as mensagens de apoio e reprimindo a liberdade individual.

A contradição está no facto de que a repressão ao direito de manifestar-se é um modo político de cercear uma cidadania activa e assente na liberdade. Ainda assim, acções silenciosas têm-se sucedido: a comentadora e antiga jogadora da selecção inglesa, Alex Scott, em directo usou orgulhosamente a braçadeira “One Love" durante o jogo de Inglaterra; a ministra alemã, Nancy Faeser, exibiu também a braçadeira da diversidade ao lado do presidente da FIFA, Gianni Infantino, durante o jogo da selecção da Alemanha; Harry Kane, capitão inglês, e Virgil van Dijk, capitão holandês, entraram em campo com a braçadeira No Discrimination, permitida pela FIFA.

Mais além, o silêncio passou a ser apropriado em campo como símbolo de protesto: numa demonstração de repúdio às limitações punitivas impostas, os jogadores da Alemanha taparam a boca em alusão a uma mordaça repressiva à liberdade de expressão; já os jogadores iranianos ficaram mudos durante a execução do hino nacional, fazendo com que o combate a uma questão interna – as violações dos direitos humanos no Irão, especialmente os das mulheres –, durante um evento sediado num país com problemas similares, fosse eloquentemente universalizado.

Os protestos são necessários, porém não podem encerrar-se em si. É preciso cobrar sobretudo acções concretas dos nossos decisores políticos e, nesse caso, dos responsáveis do desporto que possuem o poder de agir efectivamente e que se mantêm inertes e em silêncio. De outra forma, o protesto não levará à prática, e continuaremos a apenas assistir à condenação da falta de direitos humanos via comunicados e entrevistas sem conteúdo pragmático e assertivo, explorando um assunto que, muito em breve, também será silenciado – por uma novidade, pelo esquecimento ou, pior, pela banalização.

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