Marmelo: Quanto tempo? O que for necessário
Contemplando as cores outonais, movo os braços enquanto o novelo cresce e penso na leiteira e no cuidado e paciência com que verte o leite para a tigela.
Há dias, ao folhear ao calhas um tomo de uma coleção de livros de História de Arte que guardo no sótão de casa dos meus pais, encontrei uma imagem de A Leiteira, do pintor Johannes Vermeer (1632–1675). Esta pintura (óleo sobre tela) terá sido realizada entre 1656 e 1657 e retrata uma mulher a verter leite de uma vasilha para uma tigela. Parece-me que a mulher o faz de forma delicada, lenta, concentrada, cuidadosa.
Parece-me. Sem certeza. A minha certeza não é minimamente importante para o leitor. Exagera-se a importância das certezas, sobretudo a certeza dos outros. Ao leitor, o comum gesto do quotidiano da leiteira que nos é proporcionado graças ao prazer de Vermeer em espiolhar momentos privados, poderá sugerir outra coisa qualquer. Parece-me também que a mulher está distraída. Talvez a pensar nas outras tarefas que tinha para fazer. Ou talvez a imaginar-se nos braços do amado. Enfim, muito podemos presumir. Presumir, um dos exercícios mais falíveis do mundo.
A imagem da leiteira é de um realismo notável. Não ao nível das pinturas hiper-realistas do artista japonês Kei Mieno que descobri recentemente (procurem-no!) e que se confundem com fotografias, mas suficientemente realista para que sempre que a observo, sinta cheiro a leite fresco no ar. Não o digo para me armar no “tipo que vê coisas que mais ninguém vê”. Digo-o porque sou os olhos que espreitam o momento privado do quotidiano da leiteira. Ao sê-lo, preencho-me de calma, silêncio, paciência, precisão, cuidado, amor. Tudo isto o gesto da leiteira me inspira.
E dou por mim a divagar no ato de manusear alimentos. Alimentos são vida. Desprezar ou desperdiçar alimentos é um absurdo. O galopante preço dos alimentos outro. O derradeiro pensamento resgata-me à bruta do transe, recordando-me de que preciso de ir ao supermercado.
Olhei para os preços da fruta e, sem me aperceber que alguém me observava, fiz uma careta.
– Está alguma coisa mal? Se estiver, diga-me já que eu emendo, senão vem o chefe partir-me a cabeça.
– Está tudo mal – respondi muito sério, fazendo um esforço enorme para não me desmanchar a rir.
– Está tudo mal?! – perguntou-me o responsável pela reposição da fruta e dos legumes, visivelmente preocupado.
– Sim, está.
– Mas o quê, amigo?
– Os preços – respondi, soltando uma gargalhada que libertou uma expressão de alívio no rapaz. Rimos juntos durante alguns segundos de coisa sem graça alguma. Os preços estão mais para chorar do que para rir.
– As pessoas reclamam comigo como se eu tivesse culpa.
– E o que lhes dizes? – perguntei, dispensando o disparate do formalismo do você em pessoas praticamente da mesma idade. No caso, o rapaz era bem mais novo do que eu.
– Digo-lhes que me queixo do mesmo! E que também levo comida para casa e que tenho de a pagar. Se calhar pensam que levo coisas de graça, não sei – concluiu, enquanto se afastava com duas caixas vazias na mão.
Fiquei parado durante algum tempo a olhar fixamente para uma caixa a abarrotar de marmelos tão polidos que mais pareciam fruta decorativa de plástico. Regresso ao presente com o som de uma voz muito baixa de uma senhora atrás de mim.
– Dá-me licença?
– Sim, sim, desculpe – digo, apartando-me da prateleira.
A senhora escolheu um par de bananas tão verdes que deviam saber a tudo menos a banana e enfiou-as num saco de plástico. Pensei em dizer-lhe que nem valia a pena levar saco, uma vez que eram só duas bananas e que se as levasse na mão ou noutro saco com outra coisa qualquer sempre se evitava que mais um plástico acabasse um dia por andar a voar por aí. Contive-me. Mas não resisti a meter conversa. Se não falasse com desconhecidos, de que outra forma podia recolher diálogos para escrever estas crónicas?
– Eu cá prefiro as bananas da Madeira, mas a este preço é impossível! – atiro, sem introdução, pegando num magnífico cacho de bananas da Madeira, à cata de um contexto que me permitisse aconselhar a senhora a levar bananas um nadinha menos verdes.
Já de costas para mim, a senhora parou. Voltou-se e olhou-me com surpresa, respondendo-me após ligeira hesitação.
– Ah pois, esse é que é o problema.
– E não se percebe – continuo eu, certo de que lhe prendera a atenção – que as nossas bananas, e que eu saiba a Madeira ainda é Portugal, sejam tão mais caras do que as bananas que vêm do Equador ou lá de onde é.
A senhora encolheu os ombros e virou-me costas com uma certeza definitiva, deixando-me com o cacho na mão. Nem de propósito, aproximou-se outro senhor, seguramente com mais uns 20 anos do que eu, que logo começou a remexer nos marmelos. Mexeu e voltou a mexer e, por fim, levou um ao nariz.
– Estão bem bonitos – arrisco. (Sim, há dias em que sou um verdadeiro chato)
– Estão, mas isto não cheira a nada, por isso também não vai saber a nada. São só químicos – responde.
– Pois – corroboro com vivacidade – e estão caros – acrescento, esperando aguçar-lhe a língua.
– Ah, isso está tudo. Mas isto do marmelo também só dá é trabalho – concluiu, devolvendo sem cuidado o fruto ao monte de onde o tirara. O marmelo, quiçá por estar tão polido, resvalou e foi parar à caixa semivazia de maças de Alcobaça. Peguei no marmelo e voltei a colocá-lo na caixa indicada. Ato contínuo, enfiei uma dúzia de maçãs no cesto. (Não utilizo sacos de plástico do supermercado, carrego os mantimentos num saco de pano, ao molho)
Antes de me afastar, observei novamente os marmelos, recordando os milhares de árvores de fruto ao abandono que vi ao longo de uma caminhada entre Lisboa e Porto. Tanta fruta desperdiçada, caída ou a apodrecer nas árvores à beira das estradas e caminhos, terrenos agrícolas abandonados e quintais: pêras, maçãs, romãs, figos, marmelos, sobretudo marmelos, seguramente a fruta mais desprezada deste país. Sustento a afirmação com a observação e desafio alguém a apresentar contagens e percentagens que me desmintam.
Contradição: não me lembro de ninguém do meu rol de familiares, amigos e conhecidos (indaguei cerca de três dezenas de pessoas próximas, com idades entre os oito e os 80) que não goste de marmelada ou de marmelos cozidos ou assados. “Mas [“mas” é a ventania inesperada que estraga um dia perfeito de praia] arranjar os marmelos, seja para marmelada ou outra coisa qualquer, dá imenso trabalho e é demorado.”
“Dá trabalho? O que é que não dá trabalho? E tens pressa para quê?”, perguntei, com exagerada indignação, a alguns dos preguiçosos e ansiosos inquiridos sobre a questão dos marmelos.
Contemplando as cores outonais, movo os braços enquanto o novelo cresce e penso na leiteira e no cuidado e paciência com que verte o leite para a tigela, ciente (presumo eu) de que para não arriscar desperdiçar uma gota que seja, o deve fazer com calma. Sinto os braços cansados quando o fio de lã se solta da minha mão.
– Quanto tempo terá passado desde que começámos? – pergunto-me em silêncio.
“Aquele que foi necessário”, respondo.