Eram três da manhã e Marie descobriu que não era o centro do universo. A consciência, escrita em letras gigantes à digestão de uma palavra por linha, é uma admissão de culpa no livro-diário La Vie de Marie — A Verdadeira História (um título a piscar mais o olho ao capítulo de ex-concorrente do Big Brother do que ao de tiktoker — Marie, 21 anos, é os dois).
“Muitas dessas histórias foram escritas na primeira pessoa no momento em que eu as estava a viver”, conta Marie, Maria Manuela Gomes no cartão de cidadão, Nelinha “para sempre” em Estela, a freguesia na Póvoa de Varzim conhecida pelo campo de golfe, onde vive, num anexo construído na antiga vacaria na casa dos avós e pais.
Algumas delas falam da relação com os pais, do porquê de ter participado num reality show (dinheiro e um desejo antigo, explica, descomplexada), da desilusão que sentiu ao mudar-se para Lisboa e de “voltar à aldeia”, de crescer com depressão e transtornos alimentares, de se sentir sozinha. Sentada no chão, à beira da cama, onde passa muito tempo, Marie finge um berrinho ao ouvir a enumeração de tópicos: “De repente, parece uma série da Netflix. Ai, que horror! Trash content”, ri-se.
As referências a ideação e tentativas de suicídio surgem ao longo do livro, sem aviso prévio para quem o lê. “Não vejo isso como um problema, até acho que devíamos falar mais disso. Não é nada difícil para mim falar sobre ter tido uma infância em que eram estes os meus pensamentos. Eu partilhar um vídeo em que digo que estou farta de existir não era assim tão grave.”
Demorou dois dias a pintar todas as paredes do quarto com mezanino, casa de banho e cozinha. Não foi pacífico, mas é o seu espaço. Está a ler Túnel 29, de Helena Merriman, e tem na mesinha de cabeceira o Olá, Consciência, uma “viagem pela filofosia” de Mendo Castro Henriques e Nazaré Barros. No computador, pousado em cima da cama, ao lado do caderno cheio de desenhos, gosta de ver “conteúdo muito lento”. “Animais fofos, TedTalks, uma miúda que vive com a avó no Japão, no meio do nada e faz tudo à mão, até os móveis da casa.”
Já teve um tempo de ecrã diário de 13 horas, agora assegura que não ultrapassa uma média de quatro horas. A regra que tenta seguir é simples, resume: “Consumir conteúdo que depois seja melhor para eu criar melhor.”
Criar conteúdo vs. criar
Só tem ligadas as notificações das mensagens. Não vê televisão nem lê notícias, desencorajada pela negatividade e por um sentimento de impotência que prefere evitar. No talho do pai, no entanto, a televisão está sempre ligada. “Vou fazendo perguntas ao meu pai e ele vai-me contando o que se passa. Durante muito tempo andei desligada da política, por exemplo, porque não tinha interesse sobre muita coisa se não a natureza e descobrir alguma coisa que fizesse sentido para mim”, diz. “Eu faço mesmo perguntas, quando não percebo e quero perceber. Parece que às vezes temos de saber tudo e eu não tenho tempo para saber tudo sempre.”
Os dois estão a planear o atelier que será a segunda vida da vacaria que há poucos anos albergava 30 cabeças de gado. “Agora, estou focada em coisas muito mais terrenas”, comenta Marie, que espera regressar à cerâmica e pintura a óleo.
Várias vezes pensou em “ter uma afirmação mais forte” quanto a causas que defende, mas as redes sociais são implacáveis na exigência de uma coerência impossível de atingir dentro ou fora delas, comenta. “Parece que não te deixam ter a tua própria opinião. Gostava de apoiar causas a nível climático, dos animais, mas ao mesmo tempo o meu pai é talhante.”
Não come carne numa casa onde desde sempre se criaram animais para consumo e todos dizem gostar muito deles, de maneiras muito diferentes. “Para mim, é uma realidade supernormal, mas sinto-me quase hipócrita a apoiar certas coisas.”
Ao mesmo tempo, só lhe fazem perguntas sobre a relação com a mãe, se namora ou a forma como se veste, especialmente depois de sair do Big Brother Famosos, em Abril. “Eu adoro estar sozinha, odeio que mexam nas minhas coisas e saio da televisão e está o meu quarto na Internet, os meus diários na Internet. Foi muito invasivo”, conta. “De repente, toda a gente sabe quem eu sou menos eu.”
O tom dos comentários no TikTok e no Instagram também piorou. Marie mostra alguns deles no livro, sem expor autores: “Sou mãe de duas e se tivesse uma filha como esta, matava-me”, lê-se num dos comentários. Alguém pausou o que estava a fazer para lhe dizer, numa mensagem privada: “Se fosses minha filha, mandava-te para dentro de um poço e ia-me embora.”
Parecem-lhe comentários desajustados quando a maior parte do que faz no Instagram é partilhar fotografias sem a depilação feita e com a roupa que escolhe, mas tem agora ferramentas que não a deixam tão vulnerável como quando as funcionárias na escola lhe chamaram bruxa, à frente da cantina toda, por aparecer de batom roxo. “Como é que existem pessoas com aquela idade que têm aquela consciência? Ainda? E tu aí pensas: ainda bem que estou a conhecê-las porque vou trabalhar o máximo em mim para não ser como elas.”