Salvem-se os vilões
Tirar o perigo das histórias infantis que ajudam a criança a preparar-se para o mundo é contraproducente. Ela tem de saber identificá-lo para poder reconhecê-lo na vida, nos outros e em si mesma.
Na feira do livro estava uma pessoa com um fato de corpo inteiro do Lobo Mau para uma ação sobre livros infantis. Alguns pais, entusiasmados, empurravam os filhos na direção do Lobo: “Vai lá tirar uma fotografia com o Lobo Mau!” As crianças, petrificadas, não se mexiam. Para os pais, aquele era um adulto com uma máscara. Para as crianças, tratava-se do vilão devorador de avós e destruidor de casas. O desconhecido na floresta de quem passaram a vida a ouvir dizer para não se aproximarem.
Há uma tendência cada vez maior para se retirar os vilões das histórias infantis e para se remover a maldade das personagens de ficção. Isto acontece um pouco por todo o lado, uma inclinação para se polir falas de personagens de livros, um atestado de estupidez passado a qualquer adulto, mas agora também a qualquer criança. Venho fazer um apelo para que parem de destruir os vilões.
Os vilões são fundamentais. Os vilões existem. Existem dentro e fora de nós. Existe a cólera, a maldade, a injustiça. Existe a violência, existe a brutalidade e a perversidade. Existe o perigo. Tirar o perigo das histórias infantis que ajudam a criança a preparar-se para o mundo é contraproducente. Ela tem de saber identificá-lo para poder reconhecê-lo na vida, nos outros e em si mesma.
Quem tem filhos sabe que eles podem, sim, ter acessos de raiva capazes de meter medo ao próprio Satanás. “O espírito de uma criança está cheio de angústias violentas e destrutivas” escreve Bruno Bettelheim, autor do livro Psicanálise dos Contos de Fadas, um defensor dos contos de fadas e dos seus vilões. Muitos pais, por não quererem aumentar as angústias dos filhos, bloqueiam-lhes os vilões. No entanto, é muitas vezes através das histórias que as crianças conseguem fazer a catarse do que estão a sentir. É uma forma de identificação, de reconhecimento e de purga.
A vida não é só luz. Aliás, a luz perderia todo o seu significado sem a escuridão. É criminoso querer ensinar às crianças que não existe o mal.
Eu cresci com os meus vilões, os vilões que amo odiar, vilões que eu combatia em conjunto com os heróis e que me moldaram muito. O que seria de mim sem o Scar, sem o Capitão Gancho? Sem as bruxas, sem o Voldemort, sem a Cruela?
Os vilões envenenam, os vilões raptam, os vilões matam. Mas matar a ficção e a fantasia, aí sim reside o verdadeiro perigo.
Os vilões são figuras simbólicas. E os contos de fadas dão corpo a uma experiência interior das crianças. “Quando os devaneios de uma criança se personalizam numa fada bondosa, todos os seus desejos destrutivos numa bruxa má, todos os seus receios num lobo voraz (...) a criança pode pôr ordem nas suas tendências contraditórias.”
Li num artigo uma lista dos contos de fadas que os pais estão a deixar de ler aos filhos: O Capuchinho Vermelho, por não quererem dizer que o lobo comeu a avó; Hansel e Gretel, por não quererem contar que ficam perdidos na floresta; O João Pé de Feijão, por ser irrealista. Esta última foi a que mais me indignou. Ser irrealista é a definição de fantasia. Todas as crianças têm necessidade de magia. Cabe aos pais procurar não aniquilar isso em nome da racionalidade, pensando que estão a ir ao encontro dos seus filhos, quando estão a distanciar-se da sua forma de apreensão do mundo.
Como escreve o mesmo autor, “os contos de fadas falam numa linguagem de símbolos e não da realidade do dia a dia”. E o importante é que haja um espaço adequado à realidade particular das crianças. Os contos de fadas são esse espelho para um mundo interior muito próprio. “Se contarem a uma criança apenas histórias verdadeiras como a realidade, ela pode concluir que a sua realidade interior é inaceitável para os seus pais.”
Os contos de fadas são a forma imaginativa de se falar do mundo profundo que cada um tem dentro de si. Querer polir esse mundo, extrair-lhe o que causa desconforto, medo ou angústia, é desumano. É querer dizer à criança que o mal não existe e privá-la de referências fundamentais para o seu crescimento. Naquele universo a criança consegue processar melhor a vida e “obter muito mais conforto do que com esforços intelectuais e racionais de adultos para a tranquilizarem”.
Estava a ver a Bela Adormecida com a minha filha que disse que gostava da bruxa. Por segundos fiquei apavorada. Lembro-me de ver o mesmo filme em criança e de chorar quando aparecia a Malévola. Tapava sempre os olhos na parte em que ela se transformava num dragão. Quando voltou a aparecer a bruxa no ecrã, com os seus cornos pontiagudos, a minha filha sorriu e disse: “Parece o Mickey! Tem as orelhas iguais às do Mickey!” Apesar de me ter dado vontade de rir a confusão entre aquele ser demoníaco e o rato mais fofinho dos desenhos animados, tive medo que ela pudesse não fazer a distinção. Mas durou pouco, porque instantes depois ela percebeu que a bruxa nada tinha a ver com o Mickey, e eu confesso que me senti aliviada.
Mais tarde na vida, podemos e devemos, sim, abraçar o lobo mau que habita em nós, e aprender rirmo-nos do que já nos faz sofrer, como quem vê nos cornos diabólicos da Malévola as orelhas inofensivas do Mickey. Mas isto são estratégias posteriores. Para se fazer essa desconstrução, é preciso primeiro fazer-se a construção e enraizamento das emoções. E para isso é fundamental não fingir que elas não existem. Esse é também o papel dos contos de fadas.
Os contos de fadas ensinam-nos o desfecho feliz, que agora muita gente questiona por achar que cria falsas expectativas, mas a verdade é que são ensinamentos fundamentais para as crianças, precisamente para aprenderem a lidar com as suas frustrações. Para saberem que, tal como o vilão é vencido, também o medo e a angústia podem ser ultrapassados. Sem obstáculos, não há conquistas.
Para mim, o pior tipo de vilão é aquele que aprisiona a imaginação.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990