O menu vegetariano de Avillez encantou a Michelin. Porquê?
Há muitas formas de encarar a cozinha vegetariana. O mais importante é que ela tenha uma identidade própria. É o que acontece no Encanto, que acaba de receber a primeira estrela Michelin.
A “chuva de estrelas” Michelin, numa cerimónia realizada em Toledo na noite de 22, acabou por, no caso de Portugal, ser uma chuvinha ligeira, mas mesmo assim com um marco importante: Encanto, o restaurante vegetariano de José Avillez, em Lisboa, foi o primeiro desta categoria a ganhar a distinção do guia na Península Ibérica.
Há já algum tempo que os inspectores Michelin começaram a reconhecer a excelência de cozinhas vegetarianas um pouco por todo o mundo. “Já foi o tempo em que os vegetais num prato tinham apenas um papel secundário junto a ricas entradas de marisco ou pratos principais de carne. Hoje, os vegetais emergem como estrelas de pleno direito em muitas mesas de fine dining”, lê-se no site do guia, num texto precisamente sobre os vegetarianos estrelados, que vão desde uma “refinada cozinha vegetariana budista zen no Japão e China” até à mais “calorosa” versão de um restaurante em Los Angeles.
Na China, por exemplo, o King’s Joy, em Pequim, tem três estrelas Michelin e ainda uma estrela verde que premia a sustentabilidade. Mas se as estrelas distinguem o ambiente requintado deste espaço numa casa com um pátio e uma sala de jantar com tecto de vidro, são igualmente capazes de valorizar o ambiente muito mais punk, urbano e industrial (mas sempre vegetariano) de um local como o Cookies Cream, em Berlim (uma estrela), situado numa antiga discoteca.
Avillez abriu o Encanto no acolhedor espaço do Belcanto (o seu duas estrelas) original, no Largo de São Carlos, numa das zonas mais nobres de Lisboa. O local tinha tido uma breve vida intermédia com um outro projecto, o Canto, que apostava na música ao vivo e numa parceria com os fadistas Ana Moura e António Zambujo, mas que se viu condenado pela pandemia.
Era preciso encontrar uma nova ideia para o espaço e foi então que, construindo uma carta que inicialmente tinha “apontamentos” de carne e de peixe, o chef acabou por perceber que não precisava deles, nem sequer de caldos de carne ou de marisco, para criar pratos com um nível de fine dining.
Os vegetais foram conquistando espaço e as potencialidades deste tipo de cozinha – que inclui ovos, manteiga e queijo – foram-se revelando cada vez mais ricas, dando origem a criações cheias de criatividade, com identidade própria e que fogem do óbvio. É possível explorar as relações com cozinhas do mundo, por exemplo num snack que remete para a América do Sul, com feijão, abacate e leite de tigre, ou sermos transportados para o Médio Oriente com um “ovo” dourado recheado com húmus.
Há referências ibéricas, como os peixinhos da horta com molho romesco e memórias de um petisco que Avillez comeu num restaurante de Beirute, com tremoços e favas. Muito interessante é também a exploração que aqui se faz dos leites vegetais, como o leite de pinhão usado num prato de cenouras e o trabalho com as diferentes texturas dos vegetais (neste aspecto, provavelmente mais versáteis do que as mais clássicas proteínas animais).
A couve-coração ligeiramente fermentada, com milhos de cebola e Queijo da Ilha, fez-nos lembrar um prato de bacalhau com grão, sendo, no entanto, completamente diferente e mostrando como, ao contrário do que acontece muitas vezes, as fermentações podem ser usadas de forma inteligente e bem doseada, sem precisarem de ser uma técnica omnipresente.
Num equilíbrio muito bem conseguido, o menu percorre diferentes linhas de sabor, culminando numa empada de cogumelos e alho francês e, sem nunca imitar pratos de carne ou peixe, faz-nos esquecer completamente que estes elementos estão ausentes. A apresentação é cuidada, de bom gosto, mas sem excessos, e sem se sobrepor ao essencial – os jogos de sabores.
E há ainda um detalhe que, parecendo que não, é importante: os pratos não gritam, no sentido que não estão ali para mostrar como o chef é genial. Estão ali em nome próprio, como se aqueles ingredientes procurassem o seu lugar e se encontrassem naturalmente naquelas combinações. É um menu de maturidade, que não precisa provar nada porque nasceu do prazer genuíno da descoberta.