Zulu era um husky vindo da rua que, pelas contas do dono, um serralheiro a morar numa freguesia de Santa Maria da Feira, devia ter uns 13 anos quando morreu.
O cão foi eutanasiado após ter sido encontrado em mau estado em casa desta família, uma década depois de ter sido acolhido. Tinha uma infecção pulmonar, anemia, cataratas nos olhos, úlceras e otites nos ouvidos, mostrava sofrimento à palpação nos membros e na coluna. Além disso, as unhas por cortar tinham-se enterrado nas almofadas das patas, o que lhe dificultava a marcha. “Morreu de velho”, insiste o serralheiro, garantindo que o animal já tinha mazelas quando lhe chegou às mãos e passou entretanto a sofrer de problemas causados pela idade. “Só lhe fiz o bem ao longo dos dez anos que esteve comigo. Sou uma pessoa de bem e fazer mal a um animal não está no meu ADN.”
Mas essa não foi a opinião do juiz de primeira instância que o condenou a pagar uma multa de quase mil euros pelo crime de maus tratos, delito agravado pela morte do bicho. “O arguido agiu com o propósito de privar o seu canídeo de cuidados de higiene e de assistência médica veterinária para os problemas de saúde de que padecia, bem sabendo que era um animal de companhia e que as suas condutas eram aptas a ofenderem a sua saúde física e a provocarem-lhe dor, sofrimento e desconforto”, pode ler-se na sentença, que sublinha o facto de não haver qualquer justificação para a conduta do serralheiro. O tamanho das unhas de Zulu, que cresceram o tempo suficiente para se espetarem nas patas, “ressalta à evidência a falta de cuidados prolongada no tempo”.
O animal terá sido negligenciado durante os seis anos que morou com o dono e a respectiva família. Segundo ficou provado em tribunal, o débil estado de saúde e o sofrimento em que se encontrava, sem qualquer hipótese de sobrevivência, obrigaram ao seu abate. Mais uma vez o serralheiro apresenta outra versão dos factos: “Estava velho e acabado, mas eu não tive culpa disso. O que é que ia fazer? Chamar um veterinário para lhe dar uma injecção para o matar?!”
A decisão do tribunal de Santa Maria da Feira também o proibiu de deter animais de companhia durante dois anos, apesar de com esta família morar ainda um segundo animal, um labrador. E contraria o entendimento segundo o qual a lei que criminaliza os maus tratos viola a Constituição. De acordo com essa perspectiva, que até agora tem orientado as decisões que o Tribunal Constitucional já produziu sobre o assunto, embora sem fixar jurisprudência, só os atentados aos valores constitucionalmente protegidos podem ser punidos com a privação de liberdade – como a vida, a saúde, a propriedade privada ou a dignidade do ser humano.
Implicando pelo menos teoricamente uma pena de cadeia para os infractores – na verdade, isso nunca aconteceu até hoje –, a lei que criminaliza os maus tratos e também o abandono terá de se fundamentar num direito com protecção na Constituição que seja violado no momento em que um animal de companhia é morto ou agredido por um ser humano.
Mas os especialistas na matéria dividem-se sobre qual será esse bem jurídico, se é que ele existe. No entender do juiz que condenou o serralheiro, o direito ao ambiente e à qualidade de vida estipulados na Constituição abrangem a protecção dos animais. O facto de a lei fundamental não o mencionar de forma explícita, argumenta o magistrado, não torna a lei inconstitucional, uma vez que isso também sucede com outros crimes, como o lenocínio.
Porém, não foi este o entendimento do Tribunal da Relação do Porto, que no mês passado anulou a condenação do serralheiro por entender que não existe suporte constitucional suficiente para punir estes maus tratos com multa ou cadeia. Ao contrário do que sucede noutros países, como na Alemanha, as preocupações da sociedade com o bem-estar animal ainda não têm expressão constitucional, alega o acórdão em causa, numa altura em que a revisão da lei fundamental dá os primeiros passos.
Apesar de já ter declarado a lei inválida várias vezes, o Tribunal Constitucional ainda não se debruçou sobre o assunto de forma geral e abstracta, com todos os conselheiros que o compõem a votarem o assunto. Quando o vier a fazer, se vingar a mesma posição que assumiram até hoje alguns dos juízes do Palácio Ratton – incluindo o seu presidente –, este diploma terá de desaparecer do ordenamento jurídico português, o que fará com que os maus tratos aos animais de companhia deixem de ser crime. Nesse cenário, maltratar um cão, um gato ou outro bicho continuará de qualquer forma a ser punível com uma contra-ordenação entre dois mil e 7500 euros.
Apesar de subscrever a absolvição do serralheiro, um dos juízes que assina o acórdão da Relação do Porto, Manuel Ramos Soares, não se mostra totalmente convicto dos argumentos que conduziram a esta decisão. Justificando a sua posição em nome da estabilidade e segurança jurídica, o também presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses afirma que, em consciência, ainda acredita na possibilidade de se encontrar um fundamento jurídico que permita “‘salvar’ a constitucionalidade do crime de maus tratos [infligidos a animais]”.
Juízes que absolvem, quando podiam condenar
Mesmo absolvendo da prática de crime os perpetradores de maus tratos aos animais de companhia, se entenderem que a lei que os permite condenar é inconstitucional, os juízes podem sempre condená-los em coimas decorrentes de outra legislação, e que oscilam entre dois mil e os 7500 euros.
Quem o diz é o procurador Raul Farias, especialista nesta legislação animal, que não sabe explicar por que é que os tribunais não usam essa opção que a lei lhes abre. A Lei 92/95, que se mantém em vigor, proíbe “todas as violências injustificadas contra animais”, como inflingir-lhes sofrimento cruel e prolongado, graves lesões ou a morte. E em vigor se mantém também a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, que Portugal ratificou, e que pune igualmente este tipo de comportamentos através do Decreto-lei 276/2001.
Nada impede os juízes de, na mesma altura em que descartam a prática do crime, alterarem a qualificação jurídica da situação por forma a poderem aplicar coimas. Em alternativa, podem também extrair uma certidão do processo para que sejam as autoridades administrativas competentes a tomarem essa medida – sejam a Direcção-Geral de Veterinária ou o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.