Elegia pela universidade portuguesa

Convocar as autoridades “civis” para dissuadir um protesto numa universidade é perverter a natureza do espaço universitário e minar as relações pedagógicas entre os professores e os alunos.

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Daniel Rocha

Existiram duas noites de 11 para 12 de Novembro a coabitar o mesmo espaço, a mesma alameda. No lado da Faculdade de Direito, no “meu” lado, os alunos queimavam os últimos cartuxos antes da época de frequências numa festa brasileira, do outro lado, na Faculdade de Letras, alunos e alunas estavam a ser expulsos e detidos pela Polícia de Segurança Pública, a pedido do director da Faculdade.

As peças jornalísticas e os artigos de opinião publicados sobre a noite de Letras ou apoiam ou criticam a “forma” do protesto e o local, e/ou tecem considerações a respeito da oportunidade do protesto quanto ao conteúdo e objectivos das reivindicações. Este texto que vos escrevo não se enquadra em nenhum é, fundamentalmente, sobre a universidade, aliás, das pessoas que a habitam.

Desde que existe Universidade existem protestos. Um dos protestos mais antigos e mais relevantes, para nos ajudar a perceber o que se passou na noite de 11 de Novembro, deu-se numa noite em Março de 1229 em Paris. Numa madrugada de festa académica, os estudantes parisienses começaram, em bom português, “à pancada” com o dono de uma taberna, devido a uma conta por pagar. Acontecia que os estudantes universitários gozavam do privilégio de não responderem perante a jurisdição civil, antes eram julgados pelo direito canónico, uma vez que a Universidade de Paris era governada pela diocese.

A regente de França da altura, perante o escarcéu montado pelos jovens estudantes, exigiu que os mesmos respondessem perante um tribunal, para serem obrigados a ressarcir os danos causados. Por sua vez, os administradores da universidade, para não arranjarem problemas com a mãe do Rei de França, deixaram que os guardas da cidade de Paris se encarregassem do assunto, matando na resolução um número considerável de alunos. Perante a violação da autonomia universitária, os estudantes e os professores responderam imediatamente com uma greve às aulas que só cessou dois anos depois, em 1231, com uma bula papal que garantia a independência da Academia parisiense em relação às autoridades locais.

Actualmente, a autonomia universitária adoptou novos contornos, um tanto mais restritivos, todavia alguns essenciais para fazer frente às necessidades de administração, gestão e legalidade que as universidades modernas têm. Não obstante, os alunos e os professores de Paris ensinaram uma valiosa lição à História, ou a quem a quiser saber, sobre o que é a universidade (do latim universitas studiorum, ou seja, agremiação de estudos): uma comunidade de professores e alunos que vivem e estudam juntos. Esta noção medieval de Universidade é a mesma com que mais de 900 universidades se comprometeram em Bolonha no ano de 1988, assinando a Magna Charta Universitatum, a declaração dos valores e princípios universitários. Logo no artigo 1.º da carta, é reforçada a importância da independência das universidades em relação às autoridades políticas e poderes económicos.

A universidade medieval e a universidade que nos comprometemos a construir é um lugar de emancipação individual e colectiva, não é um serviço da administração do Estado — nem os professores são funcionários da Administração Pública, nem os alunos são utentes. Agora, convocar as autoridades “civis” para dissuadir um protesto numa universidade é perverter a natureza do espaço universitário e minar as relações pedagógicas entre os professores e os alunos. Uma coisa é não concordar com o protesto e desafiar os alunos para uma discussão, convidá-los a serem ouvidos pelo Conselho de Escola, pelo Conselho Científico ou pelo Conselho Geral da Universidade, outra coisa será, perante as “perturbações causadas”, abandonar o diálogo dentro da comunidade académica, recorrendo aos instrumentos repressivos dos interesses instalados, por mais democraticamente legitimados que sejam os interesses do governo da República.

As universidades sempre coexistiram e cresceram através do protesto, do pensamento crítico e da disrupção. Os professores eram professores e não funcionários, porque a sua lealdade residia com a Universidade, com a gente que nela vivia e trabalhava e não com aqueles que, no momento, controlavam a política ou representavam os interesses económicos instalados. Em 1229, os professores tinham a coragem de estar ao lado dos alunos contra a brutalidade policial, promovida pelo Governo de França, e hoje: temos universidades ou restam-nos somente os seus esqueletos?

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