Enquanto um filho vive, uma mãe vive também
Sem a sua referência não sei quem sou, porque me defino sempre por semelhança ou oposição [à minha mãe] — se ela desaparecesse, eu sumia-me com ela.
Querida Mãe,
Ontem uma das minhas filhas disse-me: “Mãe, se morresses eu queria morrer também.”
Respondi-lhe que se ela se atrevesse a aparecer-me no céu antes de tempo levava um sermão! Mais a sério: expliquei-lhe que percebia que lhe parecesse o fim do mundo, mas que, na verdade, à medida que fosse crescendo ia ter a sua própria família (seja em que moldes for), paixões e projetos que tornariam a minha ausência difícil, mas não insuportável. Que teria muitas coisas pelas quais viver e que, para além do mais, estava cheia de sorte porque havia tanta gente que gostava tanto dela.
Acredito no que lhe disse… mais ou menos.
Fiquei a pensar que talvez me tenha andado a enganar, com aquela conversa “Ah, os nossos pais morrerem é parte do ciclo natural, e coisa e tal”, mas cheira-me que é “wishful thinking” — mais o que quero que aconteça do que aquilo que na realidade acontecerá.
Mãe, já sou casada, tenho quatro filhos, mas mesmo assim a ideia de não vos ter tira-me o ar. Sim, estou segura de que sobrevivo, e sei que não vou querer morrer porque tenho tantas coisas por que viver, mas parece-me inimaginável. E insuperável.
Pronto, esta carta é um bocadinho deprimente, mas quero que esteja consciente disto: vou ficar bem, mas vai-me custar tanto, tanto, mas tanto não a ter cá! Felizmente ainda temos 40 anos juntas, pode ser que até lá mude de ideias (ouvir aqui uma gargalhada).
Tendo já passado por esta dor, o que me tem a dizer? Vai-se se tornando mais suportável perder a nossa mãe?
Beijinhos.
Minha Querida filha,
Só tu para me fazeres rir e chorar ao mesmo tempo.
Mas estás completamente enganada, e enganaste a minha pobre neta por arrasto: as mães não morrem!
Não desaparecem e não se calam, para o bem e para o mal, e posso garantir-to por experiência própria.
Juro-te que a minha mãe me aparece todos os sábados de manhã quando fico na cama até depois das nove. Oiço-a a cirandar à porta do meu quarto até que não resiste e entra para me acordar com a lista de tudo o que tenho por fazer.
Garanto-te que sinto as suas mãos na minha testa, os dedos abertos em pente, fazendo-me festas suaves que me acalmam, até que os meus olhos se fecham e adormeço.
Prometo-te que ela se indigna sempre que finjo que não vejo uma injustiça, e me chaga o juízo até me obrigar à ação — mudar o mundo para um sítio melhor à medida dos meus talentos, não é uma opção.
E asseguro-te que é a tua avó que me manda recitar com os netos as canções de embalar, a tirá-los do banho, enrolando-os na toalha, enquanto grito “Apanhei um monstro”. E é com ela que continuo a discutir como uma adolescente por tudo e por nada.
Sem a sua referência não sei quem sou, porque me defino sempre por semelhança ou oposição — se ela desaparecesse, eu sumia-me com ela. Ou seja, enquanto eu viver, ela vive também.
Essa é a verdade que interessa: nunca te vais ver livre de mim. Nunca te vais sentir sem mim.
Mas quero deixar-te um aviso. Por vezes, há um jet lag interior entre a morte física de uma mãe e o tempo em que volta a estar plenamente connosco. Se, por infelicidade, os últimos anos foram de sofrimento físico e mental, se perderam faculdades ou se, por força da doença, se tornaram mais difíceis, irascíveis até, por vezes mesmo cruéis, sobretudo para quem está mais próximo (habitualmente as filhas), os primeiros tempos após a sua morte podem ser insuportavelmente dolorosos.
Racionalmente sabemos que aquela não era a nossa mãe, mas aterroriza-nos a ideia de que seja esta última imagem a prevalecer, e parece-nos que nem conseguimos aceder às boas memórias, a como ela realmente era. É preciso dar tempo ao tempo, porque aos poucos regressam com todas as cores. Mas, às vezes, é preciso procurar ajuda de um terapeuta para podermos libertá-la desse colete de forças em que as circunstâncias a fecharam. Libertando-nos com ela.
Porque, Ana — respira fundo —, quem, por amor, tem medo de perder uma mãe, está safo. Muito mais complicado é o que espera os filhos de mães que, por mil razões, nunca o foram em vida.
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.