Os pobres de pedir

Se olharmos para um jovem de 25 anos, vemos que foi confrontado com a crise do subprime, presenciou a crise das dívidas soberanas, enfrentou uma pandemia e inicia-se no trabalho com uma guerra.

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Jovens Unsplash

Foi já no leito final da sua vida, quando a morte abraçava os dias outrora cheios de uma prosa farta, que o célebre autor portuense Raul Brandão escreveu a obra que dá título a esta leitura. O livro foi publicado sem a revisão do autor, cuja morte lhe impediu a intenção. Ainda assim, a derradeira obra do escritor foi lançada como do alto de uma montanha, de onde tudo se vê. Porque se a vida é uma escalada, os últimos três meses de vida de Raul Brandão, os quais ocupou a escrever O Pobre de Pedir, eram o cume da sua montanha. Do alto da sua vasta experiência militar e jornalística, e do conhecimento profundo da realidade portuguesa dividida entre o Porto, Guimarães e Lisboa, o autor verteu nesta obra singular o seu desencanto com o mundo, a impotência do ser humano e a evidência de uma catástrofe eminente, individual e comunitária. As grandes obras revestem-se de uma intemporalidade assustadora, e a realidade vigente atribui essa qualidade à obra de Raul Brandão.

A respeito do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, foi divulgado pela Pordata um relatório sobre a pobreza em Portugal antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. A guerra na Europa veio agravar uma crise que se adivinhava como global, contribuindo para o aumento da espiral inflacionista – que já se verificava antes da invasão – e para o aumento de custos associados ao abastecimento energético. Como todas, esta crise atinge mormente as franjas mais vulneráveis da sociedade, promovendo um reforço da desigualdade e injustiça social.

Segundo a Pordata, 43,5% dos portugueses possuem um vencimento mensal igual, ou inferior, a 554 euros, o que os coloca em risco de pobreza. Sem a ajuda do Estado português, quase metade da população nacional encontra-se em risco de pobreza ou exclusão social. Um valor superior ao que se verificava em 2010 e que aumentou pela primeira vez desde 2014. Após as transferências sociais, este valor diminui para 18,4%, ou seja, mais de 2 milhões de portugueses, ainda que apoiados pelo Estado, encontram-se em risco de pobreza. Isto representa cerca de um em cada cinco habitantes.

Em comparação com o período pré-pandémico, Portugal piorou a sua posição, no que à pobreza diz respeito, em três indicadores: na percentagem de população em risco de pobreza ou exclusão social, na taxa de risco de pobreza e na desigualdade na distribuição de rendimentos. Actualmente, Portugal é o 2.º país da Europa com mais pessoas a viver em más condições.

Se as gerações anteriores tiveram cenários de estabilidade que lhes permitiram construir uma estrutura financeira e familiar capaz de aguentar estes cenários, existe uma geração que é agora confrontada com uma realidade pela qual não é responsável e para a qual não está preparada. Se olharmos para o exemplo de um jovem de 25 anos, podemos verificar que durante a sua infância foi confrontado com a crise do subprime, na adolescência presenciou a crise das dívidas soberanas, passado uns anos enfrentou uma pandemia e inicia-se no mercado laboral com uma guerra na Europa. Talvez isso nos faça perceber porque é que mais de 40% dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção têm menos de 25 anos.

Nós somos os pobres de pedir sobre os quais Raul Brandão escreveu no princípio do século passado. Nós somos esses pobres, impotentes e na vertigem de uma catástrofe. A catástrofe de sermos todos pobres, excepto os ricos. O fim da classe média confunde-se com o fim da sociedade, porque num momento em que não haja uma classe média sólida e estruturada como pilar basilar de um país, as fundações da sociedade caem com ela, sobrando apenas o “nós” e o “eles”, terreno fértil onde fecundam o populismo e os extremismos.

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