Miguel Ángel Moreno. Como o preço justo das uvas fixou viticultores em Castela e Leão
A “curiosidade” e “inquietação” de um viticultor de Castela e Leão levou-o criar um modelo de cálculo do custo de produção das uvas na Rueda, onde o preço médio subiu de 35 para 51 cêntimos o quilo.
Miguel Ángel Moreno é jurista e dá-se “mal com os números”. Dono de uns “respeitáveis” 22 hectares de vinha na Rueda, Castela e Leão, sabe bem que “a viticultura exige um esforço muito grande”, que “é justo” que seja “compensado”. A convite da associação Associação dos Viticultores Profissionais do Douro (ProDouro), que promoveu um colóquio sobre mão-de-obra no Douro na última sexta-feira, fez mais de 300 quilómetros até Sabrosa para partilhar com viticultores e empresas da região demarcada um novo modelo de cálculo do custo de produção da uva.
Em entrevista ao Terroir, fala num “aumento imediato” do preço das uvas na Rueda assim que o seu estudo foi divulgado. Em 2021, as uvas eram pagas, em média, a 35 cêntimos o quilo. “Este ano, antes da vindima, os grandes operadores já estavam a oferecer 53 e 55 cêntimos”. Moreno diz que, assim, “a actividade já é rentável” e, fruto disso, “nunca se vai abandonar a Rueda”.
Como surgiu a criação deste modelo de cálculo do custo de produção das uvas na denominação de origem Rueda? O Miguel é economista?
Eu tenho formação jurídica e dou-me mal com os números [risos]. Mas sou viticultor, tenho uns respeitáveis 22 hectares. E olho para as minhas condições, sou inquieto e tenho curiosidade em saber. E, além do mais, reivindico a mudança de uma situação que tem levado a que, nos últimos anos, as uvas da Rueda sejam pagas abaixo dos custos de produção.
Sentia inquietação pelo facto de o preço das uvas não ser justo?
Efectivamente. Houve um tempo em que, na denominação de origem Rueda, os preços das uvas eram muito altos. E isso teve um efeito de chamada. Aumentaram muito as plantações na região, sem que houvesse um equilíbrio entre a oferta e a procura. Isso teve como consequência um abaixamento do preço das uvas, que hoje não é sustentável para quem cultiva.
E os preços dos vinhos?
Houve vinhos cujos preços se mantiveram altos, mas outros baixaram, porque havia que dar saída ao excesso de produção. E a saída foi baixar os preços do vinho. Entretanto, recuperaram um pouco, mas o preço pago pelas uvas não estava a recuperar. Em Espanha, no ano 2013, e com as últimas reformas dos anos 2020 e 2021, foi publicada a Lei da Cadeia Alimentar [Lei 16/2021], que prevê a celebração de contratos equilibrados, com preços justos e que nunca possam estar abaixo dos custos de produção da uva. Todos queremos ser compensados pelo nosso esforço. A viticultura exige um esforço muito grande. É justo que o nosso trabalho seja compensado. E o que a Lei da Cadeia Alimentar prevê é que se analise a evolução dos preços em cada uma das etapas da produção, neste caso da uva, até ao consumidor final. E os aumentos que se vão verificando têm de ser tidos em conta por qualquer agente que intervenha desde a plantação da vinha até à garrafa de vinho que bebemos à mesa. Em todo esse ciclo intervêm vários agentes e todos eles têm de ser protegidos e para se salvaguardar os custos de produção. Entre esses agentes estão os viticultores.
Essa preocupação começou a generalizar-se entre os viticultores da Rueda?
Correcto. Houve uma inquietação generalizada, embora nem todos sejamos capazes de o expressar da mesma forma. Sabe, na vida, os movimentos sociais, económicos ou outros são sempre liderados por alguém.
Aqui, foi o Miguel quem pôs mãos à obra.
Exactamente.
Quando iniciou este estudo?
O estudo teve início em Abril deste ano e ficou concluído em Agosto. Naturalmente que fizemos várias consultas a técnicos de viticultura, viticultores, comerciantes, enólogos, consultores e outros. E, claro, sempre apoiados pela documentação disponibilizada pela Organização Interprofissional do Vinho de Espanha [OIVE], pela Diputación Foral de Álava, que é a comarca da denominação de origem Rioja, e da própria Rioja [Observatorio de Precios Agrarios del Gobierno de la Rioja]. Também consultámos os dados das últimas colheitas, os números referentes ao cultivo em regime de sequeiro e regadio, os referentes ao cultivo em bardo ou não, e em função das variedades, que na nossa região é maioritariamente a Verdego. Tudo isso deu origem a um resultado que publicámos. E foi daí que surgiu o convite do António [Magalhães, membro da direcção da ProDouro e director de viticultura da Fladagate Partnership] para que viesse aqui a Sabrosa partilhar o estudo com os viticultores do Douro.
Há problemas e preocupações semelhantes na Rueda e no Douro?
Da conversa que tivemos, chegámos à conclusão que os problemas e as preocupações que temos nas duas regiões são muito parecidos.
A falta de mão-de-obra na viticultura também é comum?
Efectivamente. O problema da falta de mão-de-obra é comum. Aqui, pelo que me contam, a maioria das pessoas que trabalha nas vinhas é portuguesa. Em Espanha há muito poucos espanhóis a quererem trabalhar na viticultura. E, aqui no Douro, dois terços dos custos de produção são mão-de-obra, na Rueda é um terço. Lá, há mais mecanização, porque a orografia não é como aqui. Apesar de termos o [rio] Douro em comum.
Aqui, falamos de agricultura de montanha, a orografia do terreno torna mais penoso o trabalho na vinha.
Sim, claro. Nós temos uma orografia mais plana, ou semiplana, o que permite mais a circulação de tractores. Lá, a vindima é praticamente toda mecânica, até porque 97 por cento da superfície das vinhas está em bardos. A condução da vinha é como aqui no Douro, com a diferença de que não há muros nem socalcos. Na Rueda, a distância entre bardos é de três metros e, aqui, é de uns escassos dois metros. Portanto, lá, conseguimos circular facilmente com tractores e outras máquinas, o que também permite que a vindima possa ser mecanizada, com muitíssimo menos custos e menos problemas de mão-de-obra. A falta de mão-de-obra faz-se sentir é nas outras tarefas agrícolas, como na poda e nas mondas. E temos um problema: os espanhóis não querem trabalhar na vinha.
Fez cálculos ao custo das matérias-primas, da maquinaria, combustível e electricidade para os sistemas de rega, da mão-de-obra nas várias fases da produção das uvas, estudou as amortizações, os custos fixos e variáveis. Mas os custos de produção em 2021 eram uns e, em 2022, com a guerra na Ucrânia, são outros. Tiveram isso em conta?
Efectivamente. Tivemos em conta os custos de produção em 2021, mas acrescentámos 9 por cento a esses números, que é o valor da inflação em Espanha em 2022. Já estão incorporados no estudo. A vindima na Rueda começou a 16 de Agosto e o nosso objectivo era que, antes da vindima, quer os comerciantes, quer os viticultores, soubessem os reais custos de produção. A energia subiu muito mais do que 9 por cento. Em Espanha subiu dois terços. O gasóleo, esse, duplicou. Os dados a que chegámos apontam para um custo total por ano e por hectare de 4182,56 euros para a vinha em sistema de regadio e 3809,39 euros por hectare para a vinha de sequeiro. O preço médio por quilo foi estimado em 47 cêntimos, para a vinha de sequeiro, e em 51 cêntimos, no sistema de regadio. O custo de produção da uva em modo biológico é 11 por cento superior para ambas as modalidades de cultivo.
Qual é o efeito prático do estudo? As empresas e comerciantes estão a ter em conta este cálculo dos custos de produção?
A Lei da Cadeia Alimentar em Espanha tem uma série de instrumentos. Entre eles está o Observatório dos Preços Agrícolas, que se dedica a estudar a evolução dos preços de cada produto. E, além do mais, há a Agência de Informação Alimentar [Agencia de Información y Control Alimentarios (AICA)], que trata de proteger e dar cumprimento àquilo que defendemos, que são contratos justos entre produtores e industriais. Tudo isto tem um fim: se esta agência tem conhecimento de quais são os custos de produção, pode vigiar para que não haja contratos [comerciais] abaixo desses custos.
O vosso estudo foi encaminhado para o Observatório e para a Agência?
Também. Porque eles podem proteger-nos. E também podemos recorrer aos tribunais, no caso de a agência não o conseguir. A agência actua de duas formas: faz as inspecções normais ou actua por denúncia. E depois adopta procedimentos sancionatórios. O que aconteceu quando apresentámos o estudo é que houve um efeito imediato.
Um efeito imediato? Qual?
O ano passado, a uva foi paga, em média, a 35 cêntimos por quilo. Este ano, ainda antes de começar a vindima, os grandes operadores já estavam a oferecer um 53 e outro 55 cêntimos. Eles não disseram que era por causa do estudo.
Mas acredita que tenha sido por causa dele?
Pensamos que sim.
O estudo alterou o comportamento das empresas que compram as uvas?
Sim. E esta informação chegou à Administração Pública, que, por via da agência, tem de vigiar os preços. Constou-nos que começaram logo a fazer inspecções. Houve mais inspecções. O efeito foi imediato.
E já se conhece o resultado das inspecções?
O resultado ainda não o sabemos. O resultado último que perseguimos é que o preço da nossa uva esteja acima dos 51 cêntimos, que é o custo médio [de produção] na região de Rueda. E isso já conseguimos.
Podemos dizer que este estudo teve um efeito dissuasor de práticas comerciais abaixo do preço de custo?
Efectivamente. Dissuasor, sim, de evitar que se pague abaixo do preço de custo. Este ano conseguimos isso, apesar de termos tido uma colheita bastante grande na região da Rueda. Logicamente, o que temos de fazer agora todos os anos é actualizar o preço dos custos de produção. No próximo ano, na vindima de 2023, como o fundamental já está feito, veremos se é possível melhorar qualquer coisa. Temos de o demonstrar, manter os custos actualizados. E temos uma legislação que nos dá suporte. A Lei da Cadeia Alimentar nasceu em 2013, quando as grandes cadeias de hipermercados utilizavam produtos de primeira necessidade, como o leite, as batatas e o pão, como isco para atrair os consumidores. Comprava-se um litro de leite por 30 cêntimos. Não se pode utilizar o leite como efeito de chamada. Não se pode consentir isso. E houve uma grande mobilização contra isso. A partir daí nasceu a primeira Lei da Cadeia Alimentar. Em 2019, a União Europeia, através de uma directiva comunitária, quase copiou o que dizia a lei espanhola. E Espanha, em 2021, ainda aperfeiçoou mais a lei e criou a Agência de Informação e Controlo Alimentar, da qual os comerciantes têm bastante medo, porque as sanções são muito duras.
O vosso objectivo foi atingido?
Sim. Atingimos o nosso objectivo, porque, como digo, o preço [das uvas pago aos viticultores] agora tem estado acima dos custos de produção. Estamos a falar de um custo anual médio por hectare de 4182,56 euros. Isto, no regadio, que é maior parte, pois, na Rueda, 60 a 70 por cento das vinhas têm regadio. Pagar as uvas a 53, 55 cêntimos por quilo é um preço justo. Permite ganhar dinheiro na média da produção. E não tem levado a um aumento muito alto no preço da garrafa.
Queria questioná-lo justamente sobre isso. O preço mais elevado de compra das uvas aos viticultores não fez aumentar o preço final do vinho aos consumidores?
Em muitos casos não.
As empresas estão a absorver esse custo?
Na denominação de origem Rueda há vinho de várias categorias. Nos vinhos das categorias superiores, o [aumento do] custo das uvas é mínimo para as empresas. Não representa nada. O que é 20 cêntimos a mais por quilo? Que é também por garrafa de vinho, porque um quilo de uva dá aproximadamente uma garrafa. É uma diferença que não se supõe que não se possa assumir. O problema não está nesses 20 cêntimos, mas na subida do preço do vidro das garrafas, do cartão ou da energia. Aí é que houve os grandes aumentos nos custos do vinho. Mas nós, viticultores, não as podemos assumir. E temos de fazer parte desse pool inegociável abaixo do qual os componentes finais de uma garrafa de vinho não podem descer. Se querem um vinho de mais qualidade, têm de o pagar mais caro. E a uva, se querem que seja de boa qualidade, pois também têm de a pagar mais cara.
Os viticultores estão mais satisfeitos com este preço mais alto das uvas?
Sim.
E isso faz atrair mais viticultores para a Rueda?
Não.
Porquê?
Como lhe disse no início, o mercado não é capaz de absorver toda a oferta [de vinho] que tem. Há mais oferta que procura. E, de há três anos para cá, não se podem plantar novas vinhas. É proibido. E este ano foi decidido que, nos próximos três, também não se vai poder plantar, por decisão comunitária. Há excesso de oferta. O mercado está saturado.
Não há espaço para novos viticultores, mas os que estão instalados também não abandonam a actividade?
Não, não abandonam. Com estes preços [pagos pelas uvas], não se abandona a produção.
Podemos concluir que este estudo dos custos de produção que levou a um aumento dos preços das uvas evita o abandono da produção vitícola na Rueda?
Totalmente. Com estes preços nunca se vai abandonar a Rueda, porque a actividade é perfeitamente rentável.
Vai apresentar este estudo aos viticultores da região do Douro. Acredita que possa ser um exemplo inspirador?
Não sou a pessoa mais indicada para o dizer. O António [Magalhães] pode falar melhor. Mas, das conversas que já tive com ele e com outros viticultores e com o David [Guimaraens, director de enologia da Fladgate e uma das vozes críticas do actual modelo de remuneração aos viticultores no Douro], creio que sim, que [o estudo dos custos de produção] pode ser aplicável nesta região. Com a salvaguarda de que, quanto à mão-de-obra, embora tenhamos a mesma escassez, os custos são muito diferentes.