Nojo: o dia em que um padre me convidou para espreitar a igreja
José viajava de comboio, em pé junto a uma das portas, quando um homem envergando calças pretas e camisa preta com a característica gola branca que identifica os padres se aproximou.
José adormeceu e sonhou. No seu sonho, viu o padre, sorridente e ávido e enojou-se. Sobressaltou-se e acordou. Sentou-se na cama e olhou em redor para percecionar onde estava.
Tranquilizou-se ao perceber a claridade do corredor que chegava ao quarto por uma nesga sob a porta. Tudo lhe era familiar. Não ouviu qualquer ruído e voltou a estender-se.
Todavia, segundos depois, sentiu um peso no estômago e, acreditando que ia vomitar a qualquer momento, correu para a casa de banho. Os pais dormiam no quarto ao lado com a porta aberta. A mãe sentiu-lhe a presença na madrugada e mexeu-se na cama. José sabia que a mãe ficaria alerta e esforçou-se por não fazer barulho, ainda que soubesse que ao vomitar acordaria toda a gente em casa. Sempre fora incapaz de conter os gritos de aflição quando vomitava.
Após entrar na casa de banho, manteve-se imóvel e sem respirar durante alguns segundos para tentar perceber algum movimento em casa. Quando voltou a respirar normalmente, percebeu que a dor no estômago desaparecera. “Foi da corrida”, pensou para si próprio, enquanto calcava o abdominal rijo como uma pedra. Urinou, lavou a cara e voltou para o quarto.
— Está tudo bem, José? —, inquiriu a mãe, com aquela voz grave de quem acaba de acordar e sem conseguir disfarçar alguma ansiedade.
— Sim, está tudo bem, fui só à casa de banho. Dorme…
Não estava.
José fechou a porta, estendeu-se na cama e tateou a mesa-de-cabeceira até encontrar o interruptor do candeeiro. Olhou para o relógio. “Quatro da manhã e agora não tenho sono nenhum”, lamentou-se em voz baixa. Pegou no livro pousado na cabeceira e começou a ler. “Está tudo bem, José?” A pergunta que a mãe lhe fizera minutos antes ressoava-lhe na cabeça como se estivesse sentado à beira de um sino de igreja a tocar sem parar.
Pousou o livro aberto no peito e interrogou-se: “Está tudo bem, José? Está? Está mesmo?” A sua voz soava baixa, mas intimidatória, replicando o que havia visto já dezenas de vezes em filmes, porventura esperando assim obter uma resposta. “Não vou contar nada. Não há nada para contar. E se contasse, tinha de justificar o que andava a fazer em Cascais hoje à tarde e não me apetece”, rematou José, num fogacho de emancipação dos 16 anos feitos há pouco, desligando a luz, convencido de que a fervura apagaria de vez o episódio que vivera nessa tarde.
“Nascemos como bebés para uma confusão fervilhante”, elaborou o psicólogo William James. José não conseguia explicar o que vivera e procurava, à bruta, convencer-se de que se tratara de algo que, fruto da sua forte tendência para elaborar cenários irrealistas, pintara com cores demasiado vivas, replicando algo que todos nós já fizemos: imaginar o pior cenário possível ou alguma coisa trágica que nos podia ter acontecido para percebermos como reagiríamos e se seria tolerável. Curiosidade mórbida? Também. Não a temos todos?
Mas o jovem José não possuía o conhecimento ou a maturidade necessária para fazer este entendimento das estratégias que colocava em prática para esquecer o episódio vivido naquela tarde em Cascais. Limitava-se a reagir. À bruta. Como fizera cerca de 12 horas antes.
José vestia calças de ganga clara, uma T-shirt branca com o símbolo de uma marca de artigos de surf estampada no peito e ténis Redley, a versão barata dos mais exclusivos Vans. Usava cabelo a esconder as orelhas, a franja cobria-lhe o olho direito, e estava bastante bronzeado, demasiado bronzeado para o início de fevereiro, o que denunciava pertencer à tribo do surf. José praticava bodyboard, o que para efeitos de imagem ia dar ao mesmo.
José viajava de comboio, em pé junto a uma das portas, quando um homem entre os 50 e os 60 anos — os anos eliminaram alguns pormenores, mas José quase é capaz de jurar de que era entroncado, não muito alto e careca —, envergando calças pretas e camisa preta com a característica gola branca que identifica os padres, se aproximou.
— Tens um ar muito saudável, aposto que fazes surf.
— Bodyboard —, corrigiu José, sorridente como sempre.
— Gostas do mar? A minha igreja fica perto do mar, é a Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, conheces?
— Não conheço — respondeu José, tímido como sempre, condição reforçada por se encontrar a falar com um padre.
A conversa prosseguiu sobre o mar e a igreja. José e o padre saíram juntos do comboio e caminharam pela Rua Direita de Cascais, o destino pretendido por José. A dada altura, o padre convidou-o a espreitar a igreja. José acedeu, não via razão nenhuma para não o fazer. Afinal, tratava-se de um padre, que mal podia acontecer? A mãe de José era católica, José conhecia o padre Agostinho, ótima pessoa, sempre cordial, estimado por todos.
Até à igreja foram dois passos. José e padre entraram pela porta principal. O padre fechou a porta. José estremeceu pela primeira vez. De seguida, o padre pousou a bolsa e molhou os dedos em água benta. Dirigiu-os depois à testa de José, onde desenhou o sinal da cruz. José estremeceu pela segunda vez. O padre manteve a mão na cabeça de José e pediu-lhe que fechasse os olhos. Já um pouco assustado, José acedeu.
— Dizes alguma coisa ao mar antes de entrares? — perguntou o padre.
— Não — respondeu José, cada vez mais assustado.
— Tens de dizer. A partir de agora, dizes: “Quem sou eu para que me venhas beijar os pés, ó mar?”, está bem? — questionou o padre num tom já menos amigável.
— Sim… — respondeu José, de olhos fechados, cheio de medo de os abrir.
— Como cumprimentas o teu pai?
— Com dois beijinhos — respondeu José.
— Não o faças. À tua mãe sim, mas não ao teu pai. Um abraço e um aperto de mão é quanto baste — ditou o padre, autoritário.
Dito isto, o padre deslizou a mão para o pescoço de José e apertou, acariciando-lhe o peito com a outra mão. José sentiu a mão do padre, firme como um alicate, a apertar-lhe o pescoço e, instintivamente, ergueu o joelho e atingiu o padre entre as pernas. O homem contorceu-se de dor e José correu para a porta da igreja. Soltou a tranca e, já na rua, gritou com toda a força: “Cabrão! Cabrão do padre careca!”
A história de José passou-se no início da década de 90 do século passado. Tudo na história do José é verdade, menos o nome com que batizei o protagonista. O José, na verdade, chama-se João. Sou eu. Contei a história na terceira pessoa porque senti que seria mais imparcial no relato. Pode não fazer sentido para muitos que o lerem, mas para mim faz, e para muitos outros certamente que também. Mas o nome do protagonista ou a forma como a história é contada é o que menos interessa.
Ao fim de alguns anos, o nojo que sentia ao recordar esta situação desapareceu. Foi um alívio, como devem compreender. Mas a memória ficou.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990