Não, a transparência (ainda) não é uma prioridade
Convém dizer que este organismo foi pensado para fiscalizar os rendimentos, património, interesses e incompatibilidades dos políticos e altos cargos públicos.
Há coisa de um ano e meio, escrevia neste espaço sobre a visível dificuldade que estava a ser a instalação da Entidade da Transparência. Não me querendo repetir, explicava na altura que este órgão tinha sido proposto pela primeira vez um 2015, mas estava aprovado — e, portanto, no papel — desde meados de 2019.
Passaram-se três anos e dois meses desde que Marcelo Rebelo de Sousa promulgou o diploma que cria a dita entidade, para cuja instalação o Orçamento do Estado já disponibilizou verbas em 2020. Em Abril de 2021, quando me referi ao assunto, já estava escolhida a futura localização: o Palácio dos Grilos, também conhecido por Colégio de Santa Rita, propriedade da Universidade de Coimbra (UC).
Desde então, soube-se (no dia 3 deste mês) que a UC já adjudicou a primeira fase da empreitada de reabilitação do espaço e que espera que as obras comecem “proximamente". Soube-se ainda que o Tribunal Constitucional, na órbita do qual vai funcionar a entidade, assinou no dia 9 de Maio o contrato relativo à plataforma electrónica da nova estrutura. E estamos conversados quanto a novidades.
Convém dizer que, de acordo com a lei, a Entidade da Transparência foi pensada para fiscalizar “os rendimentos, património, interesses e incompatibilidades dos políticos e altos cargos públicos”. Parece-me o organismo perfeito para responder a quaisquer "dúvidas interpretativas" sobre incompatibilidades como as que têm surgido recentemente.
Passado tanto tempo (passada também uma pandemia e nove meses de guerra), é caso para perguntar: que triste destino nos impede de ter este organismo, que foi assumido como uma prioridade na legislatura da “geringonça” (foi, aliás, uma das conquistas da Comissão da Transparência, criada no Parlamento), três anos depois da promulgação da lei? É aceitável não se conseguir montar este gabinete?
A melhor reacção foi a de Marcelo Rebelo de Sousa, há uns dias. “É incompreensível, é incompreensível”, disse o chefe de Estado a partir de Vila Nova de Gaia, onde participou no encerramento de um encontro do Conselho Superior da Magistratura. “Eu entendo que, se foi considerado num determinado momento que era fundamental aquela entidade (...) e se passaram alguns anos sem ela ser criada, a sensação que pode haver em alguns portugueses é a de que, afinal, a transparência não é uma prioridade na sociedade portuguesa”, acrescentou. E ainda disse esperar que essa sensação não venha a existir.
Para mim, é bastante claro que essa ideia de que a transparência passou para segundo plano já existe: não só por isso, mas também por isso.
A maioria absoluta não pode servir só para os deputados socialistas aprovarem orçamentos e leis à medida do PS ou para travarem audições de ministros do Governo do PS — uma espécie de força de bloqueio, mas ao contrário. A maioria absoluta também tem de servir para fazer coisas que não foi possível fazer antes. Por falta de coragem política ou de interesse. Ou porque não convêm a quem ocupa ou pode vir a ocupar os cargos abrangidos pelas leis. É incompreensível. É incompreensível.