O caso das três sopas
Aparentemente, embora não percorram as ruas a pé, entre os responsáveis autárquicos há alguém que percorre o Facebook.
Tenho a sorte e o privilégio de poder ir e vir todos os dias a pé de casa para o emprego, em Lisboa. Para o fazer, atravesso, na ida, boa parte da freguesia do Areeiro e, no regresso, a freguesia de Alvalade. Na volta, menos constrangido pelo tempo, procuro passar sempre por ruas e locais diferentes. Foi no decurso dessas idas e vindas que me deparei com aquilo a que vou chamar “o caso das três sopas”.
Durante quatro semanas, todos os dias, passei por um local onde, no passeio de um dos bairros de vivendas de Alvalade, na Rua Carlos Malheiro Dias, estavam três sopas. As sopas, aparentemente compradas num supermercado e ainda por abrir, estiveram no passeio durante todo este tempo sem terem merecido a sua recolha por parte dos serviços municipais ou da junta de freguesia.
Poderia também aqui discorrer sobre a razão pela qual alguém vai à Refood Alvalade, buscar não uma, mas três sopas, não as abre e as abandona na via pública, mas não só não é esse o tema do texto como também não me sinto moralmente competente para julgar alguém que tem a necessidade de procurar alimentos para poder sobreviver. Contudo, já me sinto competente para perguntar o que se passa e o que poderá explicar porque é um caso tão evidente de resíduos urbanos por recolher consegue subsistir durante um mês (pode ter sido até mais alguns dias) num passeio de uma das freguesias mais ricas de Lisboa, com um orçamento de mais de 1,3 milhões de euros em Higiene Urbana, sem que tal tenha merecido a atenção por parte de um autarca ou um responsável de serviço.
A primeira explicação para o misterioso “caso das três sopas” passa pela inexistência de percursos a pé regulares por parte dos eleitos locais. Além de saudáveis, tais passeios permitiriam também um bom conhecimento do território que fosse além das vias principais, transitáveis por carro, e que permitisse identificar situações tais como a existência de candeeiros desligados (na minha freguesia, em périplos nocturnos, contei recentemente mais de 40); danos e depressões na calçada (uma das pragas de Lisboa); a existência de sacos de lixo abandonados na rua, encostados a candeeiros, árvores, esquinas e paredes.
No último caso há que referir que nos locais onde estes sacos aparecem (por vezes há décadas: em locais conhecidos por todos) as equipas de juntas diligentemente recolhem esses sacos. Mas quando estes resíduos aparecem em locais inesperados, algo falha: e na ausência dessa previsibilidade e da inexistência notória de “périplos autárquicos pedestres” por parte dos autarcas destas freguesias que melhor conheço, eis o produto que obtemos: o caso das três sopas.
Assim sendo, deixo assim aos autarcas de Lisboa, desde o seu presidente à sua equipa de vereação, passando pelos presidentes de Junta e pelos seus vogais um conselho bastante simples: previnam novos casos de três sopas no passeio: saiam dos vossos carros, atrevam-se a percorrer as nossas belas ruas e conheçam as nossas paisagens, os nossos jardins, as nossas árvores e gentes e percorram regularmente, de dia e de noite, as ruas das vossas freguesias. Imitem Justiniano, que tinha por hábito deixar o seu palácio na condição de anónimo e percorrer as ruas da sua capital para sentir o pulso da população e conhecer os seus problemas e necessidades e resolver o que tinha que ser resolvido. Justiniano não teria deixado suceder o caso das três sopas. Não deixem também que ele continue a suceder convosco.
Perguntará agora o leitor como se resolveu o caso das três sopas. Se o vosso cronista acabou por as recolher, ele próprio, e colocar no lixo (coisa que não fiz porque nos primeiros dias ia apressado para o emprego e, depois, porque nos subsequentes, fiquei curioso com o número de dias que elas ficariam por recolher). Também não desapareceram por ter aberto uma ocorrência na aplicação “Na Minha Rua” da CML, nem por ter telefonado nem enviado email para a junta de freguesia. Desapareceram porque publiquei a fotografia no grupo de Facebook dos Vizinhos de Alvalade e, depois, a mesma publicação foi reforçada pelo outro administrador do grupo, o Gustavo Ambrósio.
Aparentemente, embora não percorram as ruas a pé, alguém com responsabilidades percorre o Facebook e viu o post, dando início ao desafiante processo de recolha das três sopas. O Facebook e as redes sociais podem ter (e têm) muitos defeitos, mas pelo menos servem para colmatar o desconhecimento do território e da sua situação que parece assolar alguns autarcas em Lisboa. E para recolher três sopas.