Ninguém gosta de livros por si só!

Estive a ouvir uma bibliotecária chamada Kate Greenway, na conferência do Plano Nacional de Leitura (PNL) sobre “Como falamos de livros?”, e não resisto a contar-te três das experiências que relatou.

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@designer.sandraf

Querida Ana,

Às vezes ouvimos uma frase, uma história que nos inflama e apetece replicar imediatamente. Estive a ouvir uma bibliotecária chamada Amy McKay​, na conferência do Plano Nacional de Leitura (PNL) sobre “Como falamos de livros?”, e não resisto a contar-te três das experiências que relatou.

1. Lê com os alunos adolescentes um “livro negro” (não sei o nome), em que há canibais e, no final, ninguém sabe com certeza absoluta quem cometeu um crime. Depois de lerem o livro, chama à escola uma criminologista profissional para a partir do que está escrito analisarem em conjunto o perfil psicológico dos suspeitos, e procurarem descobrir quem é o assassino. E para apimentar a coisa — prepara-te —, no final da sessão fazem uma prova de carnes diferentes, entre elas de (supostamente) carne humana. A bibliotecária ria tanto a contar que “houve alguns que quiseram provar a humana segunda vez! Descobri que tenho muitos weirdos na biblioteca”.

Ana, que alívio uma abordagem com humor, que não é paternalista, um contraste tão grande com aquelas versões melodramáticas de que é preciso “amar” os livros, “apaixonar-se pelos livros”, que os livros são para “pensar”. A sério, se fosse professora pegava já nesta ideia.

2. A segunda ideia era igualmente genial. Sabes que livros é que lê com os adolescentes? Os livros ilustrados para crianças. Diz que lhes dá uma oportunidade de lembrarem o prazer que sentiam em pequeninos, quando os livros eram fonte de alegria, sem fins didácticos. Cria uma clareira em que os deixa ser aquilo que eles intrinsecamente continuam a ser, crianças. Crianças cansadas de fazerem de crescidos todo o dia. Muitos, garante, quando regressam a essa fonte de prazer, partem depois para outras leituras.

3. Espera, só mais uma — interessam-lhe os miúdos do ciclo que ficam para trás, que estão desmotivados. E sabes o que é que faz com eles? Põe-nos a ler alto para os do jardim-de-infância e do 1.º cicloa. Pela primeira vez são as estrelas, têm a oportunidade de desempenhar um papel positivo, brilham aos olhos dos mais miúdos. Muitos ficam com esse “cargo” o ano todo, para felicidade própria e das crianças de quem se tornam modelos, e tem um efeito enorme na sua auto-estima. E, claro, depois em tudo o resto.

Precisamos mesmo de sair da caixa!

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Kate Greenaway, em Lisboa, na conferência que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian fatimavicentesilva_photography

Querida Mãe!

Já estou apaixonada pela Amy! Concordo em absoluto, e fico cheia de vontade de ir assistir a uma dessas sessões. Tive a sorte de ter professores assim, numa escola que promovia o entusiasmo e a curiosidade que são, comprovadamente, o maior motor da aprendizagem.

Ao contrário do que se pensa ninguém gosta de livros por si só! Gostamos das histórias que contam e só gostamos dessas histórias na medida em que nos envolvem! Não é um amor incondicional aos livros.

Os escritores têm de saber entusiasmar-nos, envolver-nos e aliciar-nos. E quando as crianças são pequenas, este papel não cabe apenas a quem escreve, mas também aos pais e professores que lêem para nós ou escolhem os livros a que temos acesso.

Também concordo, e aliás sempre defendi, que é urgente ter livros ilustrados de crianças em todo o 1.º ciclo, e desmistificar a ideia de que esses livros são exclusivos ao jardim-de-infância. Por uma razão muito simples: até ao 4.º ano, por mais que já saibam oficialmente ler, muitos ainda não têm a leitura suficientemente desenvolvida para acompanhar uma história com muito texto. E não há nada mais desmotivante do que estar a ler um livro e não percebermos metade. É isso que frustra os miúdos.

Nos livros ilustrados as frases mais pequenas, as ilustrações, e a própria construção de história estão pensadas para que eles entrem na história, e para que a leiam sozinhos com sucesso! Além do mais, um bom livro ilustrado é uma obra de arte, de que não devem ser privados nunca. Viva as Amys deste mundo!

Beijos


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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