Meloni vai ser indigitada para formar governo com Berlusconi a pôr em risco a coligação
Não é novidade que as posições sobre a guerra da Ucrânia dividem os membros da coligação que venceu as eleições em Itália. O problema é Berlusconi não parar de falar disso.
Durante a campanha, prometeu que seria o garante de moderação no futuro governo da aliança de direita e de extrema-direita. Depois das eleições, seguiram-se deslealdades nas escolhas dos cargos parlamentares e governamentais e exigências sobre os ministérios a ocupar pelo seu partido, Força Itália (FI). Mas sobretudo, sucederam-se os episódios Vladimir Putin. Nesta sexta-feira, depois de Giorgia Meloni lhe ter feito um ultimato público muito duro, Silvio Berlusconi apresentar-se-á com Meloni e com o resto da coligação na audiência com o Presidente, Sergio Mattarella. Prestes a ser indigitada para formar governo, Meloni teme os danos internos e externos do comportamento do ex-primeiro-ministro.
O primeiro dos episódios Putin ocorreu ainda antes das eleições antecipadas de 25 de Setembro, na última semana de campanha. Numa entrevista, Berlusconi defendeu o Presidente russo, afirmando que este não queria a guerra na Ucrânia e que só invadiu o país para expulsar os “nazis de Kiev”. Tratando-se de Berlusconi, o incidente poderia ter sido facilmente esquecido. Mas esta semana, no meio das negociações partidárias para formar governo, surgiu uma gravação em que Berlusconi admite ter recebido uma “carta muito doce” e 20 garrafas de vodka de Putin no seu aniversário, quatro dias depois das legislativas, e diz ter retribuído com “uma carta também doce” e garrafas de Lambrusco.
Esta troca de lembranças, meses depois das primeiras sanções decretadas pela União Europeia à Rússia, caiu mal em Bruxelas. Mas a situação ainda podia piorar. Um dia depois, novo registo, onde Berlusconi acusa o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, de ter “triplicado os ataques à repúblicas do Donbass” e explica que Putin, “sob forte pressão de toda a Rússia”, teve de “inventar uma operação especial”. Acrescenta que não pode dizer o que pensa sobre Zelensky e critica a actual ausência de “verdadeiros líderes” na Europa e nos Estados Unidos.
Isto tudo aconteceu depois de uma quase ruptura entre Berlusconi e a próxima primeira-ministra, após o ex-chefe de governo lhe ter tirado o tapete na eleição para a presidência do Senado e de ter visto os seus apontamentos sobre Meloni apanhados numa fotografia (“prepotente” e “ridícula” eram alguns dos adjectivos). O último episódio Putin foi a gota de água.
“Há uma coisa sobre a qual fui e serei sempre clara. Pretendo liderar um governo com uma linha de política externa inequívoca. A Itália é, totalmente, e de cabeça erguida, parte da Europa e da Aliança Atlântica”, afirmou Meloni num comunicado. “Quem não concorda com essa pedra fundamental não poderá fazer parte do governo, mesmo à custa de não se formar governo.”
Maior clareza era impossível. E compreende-se. Líder de um partido, Irmãos de Itália, descrito como pós-fascista, sabendo que precisa de ganhar credibilidade e respeitabilidade externa, tudo o que Meloni não queria era ser indigitada para formar governo no meio de uma crise sobre a posição de Itália relativamente à Rússia e à Ucrânia. Não é surpresa a proximidade de Berlusconi ao Kremlin, como se sabe das boas relações entre o presidente do outro grande partido da coligação, Matteo Salvini (Liga), e Moscovo. Mas saber-se não é o mesmo que ter os noticiários dominados por isso.
Berlusconi manteve-se em silêncio na véspera da audiência da coligação com Mattarella. Em Bruxelas, junto dos membros do Partido Popular Europeu, Antonio Tajani, coordenador do FI, esforçou-se por assegurar que as palavras de Berlusconi não correspondem ao que pensa nem à posição do partido. Em França, o jornal Le Monde escreveu que estes casos “podem minar seriamente a credibilidade de Itália na Europa”. Em Kiev, o porta-voz de Zelensky publicou um tweet que pode ser resumido assim: “Berlusconi bebe vodka, Meloni defende os verdadeiros princípios.”
Ao final do dia, em declarações aos jornalistas, o líder do quarto e pequeno membro da aliança de direita (Nós Moderados), Maurizio Lupi, afirmou, em jeito de desejo, que na audiência com o Presidente “falará Meloni”, caso contrário, “não serviria de nada ir com uma delegação única da coligação”. E ainda: “Berlusconi, como fundador do centro-direita, deve reconhecer que agora a líder do centro-direita é Giorgia Meloni.”