Tony Miranda: “Faz-se muita roupa para espectáculo. A verdadeira alta-costura é uma peça simples”
Foi em Paris que o costureiro, natural de Torrados, perto de Felgueiras, fez a carreira na alta-costura. Em Portugal, trabalha para clientes estrangeiros “desde que se levanta até que se deita”. Esta quarta-feira apresenta uma nova colecção em Lisboa.
No ateliê de Tony Miranda, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, há moda de perder vista. Na pequena sala onde recebe os clientes para as provas, as paredes são decoradas com fotografias a recordar as mais de cinco décadas que dedica ao ofício da alta-costura ─ primeiro em Paris e depois em Portugal. Prefere ser chamado de costureiro em vez de designer, porque é entre as linhas, as agulhas e os tecidos que se sente plenamente realizado. Nesta quarta-feira, 19 de Outubro, apresenta a colecção Recomeçar, num desfile independente, no seu empreendimento turístico no coração da capital.
Mais do que um criador de moda, o nortenho de 74 anos é um empresário. Três semanas antes de apresentar a nova colecção, recebe o PÚBLICO para conversar nos seus apartamentos de turismo de moda nas traseiras do atelier na principal artéria comercial da cidade. É ali que ficam alojados muitos dos clientes estrangeiros que o visitam. Nos tempos áureos da carreira como costureiro em Paris chegou a vestir celebridades como a actriz Brigitte Bardot ou os cantores Jacques Brel e Sylvie Vartan. Em Portugal, lamenta, há pouca gente a vestir alta-costura ─ é que cada coordenado pode custar 100 mil euros ─ e é para o cliente estrangeiro, muitas vezes sob anonimato, que trabalha.
Depois de 70 anos “no meio dos trapos” só há um sonho que lhe falta concretizar: fundar uma escola de alta-costura em Guimarães, a cidade que escolheu como lar desde que regressou a Portugal. Não tem mágoa de não ser reconhecido por cá e muito menos de nunca ter sido convidado para entrar nos eventos de moda nacionais, como a ModaLisboa ou o Portugal Fashion. “Talvez quando desaparecer, me reconheçam”, termina.
A sua mãe era costureira. O Tony também sempre teve curiosidade por aprender o ofício?
Posso dizer mesmo que nasci no meio dos trapos. Desde que me conheço, a minha essência sempre foi a costura. Com muitas contrariedades que houve por parte do meu pai, mas consegui. Tinha de conseguir porque a força de vontade e o querer mandam sobre tudo.
O seu pai não queria que fosse costureiro?
Queria que fosse sapateiro como ele. Era um grande mestre de sapatos, sobretudo, de botas. Ele tinha medo de que a costura de roupa de mulher não fosse para homens. Mas depois sempre consegui convencê-lo de que estava enganado. A minha mãe pediu a um alfaiate que me deixasse ir para casa dele aprender. E tudo começa daí.
A arte da alfaiataria é difícil?
O alfaiate tem uma maneira de trabalhar muito especial. Se for um verdadeiro alfaiate, a forma de trabalhar é mais aperfeiçoada do que uma costureira. Tenho funcionários de alfaiataria a quem posso dar qualquer modelo de senhora e eles fazem. Uma costureira para conseguir fazer um fato de homem nem sempre é capaz.
Esse preconceito do seu pai ─ de que a roupa de mulheres não é feita por homens ─ foi algo com que se deparou quando quis ser criador de moda?
Nunca pensei nisso. Quando comecei a trabalhar com o alfaiate, aprendi para homem, mas o que queria era fazer senhora. Agora faço as duas coisas e gosto de ambas.
Saber costurar, saber como se executam as peças, é importante num criador de alta-costura?
Acho que sim. Todos os nomes da alta-costura aprenderam a coser e começaram sentados no banquinho. Só saber desenhar não chega. Porque posso desenhar, mas se aquele que corta, que faz a tela, não seguir as minhas intenções, não se parece com nada. Digo sempre, tenho muita pena, que esta profissão se continuar assim, venha a acabar. Não havendo aprendizagem...
Não há interesse dos jovens?
Os jovens que vão para a escola só querem desenhar e depois dão a uma costureira. Mas quando não houver costureiras, o que é que se faz?
A falta de mão-de-obra é já um problema com que o Tony se depara?
Toda a gente que tenho comigo, fui eu que os formei. Mas enquanto estiver cá, não vou abandonar. Ainda vou ver se consigo montar uma escola de aprendizagem de alta-costura. É o sonho.
Houve um dia em que viu um desfile na televisão e desde então queria ir para Paris?
Foi esse desfile do Christian Dior que me despertou realmente aquela vontade do “tenho de ir para Paris”. Fiquei completamente passado quando vi aquele desfile. Um rapaz de 13 anos que está numa aldeia que pensa nos trapos da moda e que vê um desfile de Christian Dior era qualquer coisa fora de série. A partir daí nunca mais descansei e passado pouco tempo consegui ir para Paris.
Como?
Havia organizações destes passadores que se pagava para eles nos levarem. Fiz 14 anos nessa viagem.
Como é que foi essa viagem?
Foram muitas horas a pé, atravessando pelos Pirenéus. Depois íamos em camiões. Levava num saco alguma roupa, mais nada. Não podia levar mais porque era preciso andar a pé.
Era como se estivessem a fugir de Portugal?
Sim, porque não era autorizado sair. De Portugal para Espanha passava-se pelo rio, e nada era legal até chegar ao centro do Paris. Foi tudo às escondidas. É muito penosa a viagem.
Valeu a pena?
Quando cheguei, estava tudo organizado. E pagavam-se na altura 12 mil escudos, era bastante dinheiro na época. São viagens que marcam, mas que para ir ao encontro do meu sonho, estava pronto a fazê-lo outra vez.
Como é que arranjou o dinheiro para ir?
A minha irmã mais velha e o meu mestre, onde andava a aprender, emprestaram-me o dinheiro. E quando cheguei a Paris, durante muito tempo trabalhei na construção.
E para alguém que sonhava trabalhar em moda, esses tempos a trabalhar na construção foram duros?
Muito duros. Um corpito de 14 anos a carregar camiões com blocos que pesavam 50 quilos, era muito complicado. Mas a força de querer ajudou, pensar “hoje estou aqui, amanhã estarei onde quero”.
Como é que conseguiu chegar a um ateliê?
Encontrei trabalho numa casa que fazia arranjos e transformava peças. A partir daí, comecei a pesquisar, a perguntar... Em Portugal já tinha até vestido um noivo. Já fazia uns modelitos porque o meu mestre não me dava dinheiro nenhum. Trabalhava em casa com a máquina da minha mãe, à noite. Manter a agulha que é muito importante quando se aprende, a perfeição, já a tinha nas mãos. Depois andei a pesquisar quem eram as melhores casas de alta-costura e que havia a possibilidade de poder entrar como aprendiz. Foi quando descobri quem era o Joseph Camps. Quando lá cheguei, disse-me: “Estamos sempre à procura de quem queira aprender esta profissão.”
Então, como era a alta-costura em Paris?
A alta-costura sempre foi simplicidade. Faz-se muita roupa para espectáculo. Mas a verdadeira alta-costura é uma peça simples e é aí que se vê a arte. Uma linha pura, num tecido liso, bem trabalho, é o que se chama a verdadeira alta-costura. Quando se começa a pôr muita coisa, às vezes é para esconder certos erros.
E depois do Joseph Camps foi na Lapidus que se afirmou como criador de alta-costura?
Cheguei ao ponto em que sabia que não conseguia evoluir mais na Joseph Camps. Lá aprendi o que era realmente a verdadeira alta-costura. Ali não passava nada: um ponto mal feito era para desmontar e voltar a fazer. Quando me apresentei na Ted Lapidus, a referência era importante e disseram-me logo que sim. O encontro com o Joseph Camps foi o ponto de partida importante para a minha carreira. Depois na Lapidus, durante dez anos, fui eu que assumi a parte criativa.
Li que no início da sua carreira tinha de mentir e dizer que não era português?
No Ted Lapidus concorri através de um anúncio do jornal. Quando cheguei havia uma fila muito grande de pessoas à espera. E foi quando um italiano abriu a porta para receber as pessoas e disse “tudo o que é italiano fica, quem não for, vai-se embora”. Fiquei na mesma e disse que era italiano. Disse que era de Nápoles, começaram a falar comigo em italiano. Como não sabia falar, disse que compreendia tudo, mas que tinha crescido em França.
Mas já sabia falar fluentemente francês?
Aprendi muito rápido. A força de querer manda mais do que tudo. Aqui em Portugal só estudei até à quarta classe.
Quando é que decidiu sair do Lapidus para começar a desenhar em nome próprio?
O Ted Lapidus começou a desligar-se do estilo que gostava e daquilo que fez o nome da casa. Quem se aproveitou disse foi o Saint Laurent, ao fazer o mesmo estilo. Às vezes, o dinheiro faz com que as pessoas não vejam aquilo que se passa ao lado. O Lapidus pensava que as pessoas vinham pelo seu nome e não pela qualidade do trabalho. Começou a querer fazer passar o pronto-a-vestir por alta-costura. E como era eu que me ocupava da parte de alta-costura, estava a pôr em causa a minha credibilidade juntos dos clientes. Ou ficava e a casa ia acabar ─ que foi o que aconteceu ─ ou então, saia nessa altura. Foi quando arrendei um atelier com boutique na zona chique de Paris, perto da Torre Eiffel.
Já tinha uma carteira de clientes?
Não foi fácil porque esses clientes não saem de casa para ir a um sítio qualquer. Estive quase ao ponto de fechar. Levei pessoal comigo e não tinha trabalho. E estava a fazer, vendas simuladas até que os clientes viessem. Até que encontrei um cliente. Decidi ir jantar a um restaurante onde sabia que algum deles [clientes da Lapidus] frequentavam e tive a sorte de o encontrar lá!
Dizia que há criadores que fazem passar o pronto-a-vestir por alta-costura. O que é que os distingue na verdade?
É sobretudo a perfeição. Um pronto-a-vestir é uma série que tanta corta para si, como corta para outra pessoa igual. A alta-costura é um estudo do corpo, ver todas as formas...
Li algures que vestiu pessoas como o Jacques Brel ou a Brigitte Bardot? Como?
Eram clientes que vinham da Lapidus. O cliente de alta-costura é um amigo. A alta-costura não são só pontinhos. O importante realmente é estudar o corpo da pessoa. E se tenho um ombro mais baixo, tentar fazer de maneira que não se note essa assimetria. Um fato em alta-costura feito à medida é uma segunda pele.
Demorou a chegar à fórmula perfeito do casaco dos fatos, por exemplo?
Leva anos a aprender. Quando tenho um cliente que me pergunta o que é a alta-costura e o pronto-a-vestir, tenho sempre dois fatos de lado. Visto-lhe um fato que é feito no pronto-a-vestir e que normalmente agrada porque tem um corte muito estudado. Mas depois quando passo para um casaco que é feito manualmente, que tem formas, já nota a diferença. É aí que se conquista um cliente. Há muito poucos verdadeiros clientes de alta-costura, porque são pessoas que compram muito.
Chegou a um ponto em Paris em que era difícil manter-se independente? Todas as casas começaram a ser compradas por conglomerados de luxo?
De todos costureiros que conheço, o único que permaneceu independente foi Pierre Cardin. Cheguei a ter um cheque enorme para me associar com um cliente, mas não aceitei.
Porquê?
Porque perdia a minha liberdade de criar. É difícil ficar independente porque para fazer parte da Federação Francesa de Alta-Costura e Moda é preciso ter umas instalações com condições específicas e fazer três ou quatro colecções por ano. Tudo isso faz com que seja preciso muito dinheiro. Preferi ficar com uma clientela que reconhece que faço alta-costura. Mas não pude fazer parte do ringue de alta-costura.
Por que decidiu voltar para Portugal no final dos anos 80?
Isto é uma história muito longa... Estou a escrever um livro onde verá todas essas histórias da minha vida. É muito complicado.
Não foi por estar farto de Paris?
Não. Não tinha vontade nenhuma de vir para Portugal.
Foi por amor?
Exactamente. São coisas que acontecem na vida, e depois é tarde para voltar atrás.
Mas arrepende-se de ter vindo?
(pausa) Há ocasiões da vida em que sim. Tenho sempre de ir a Paris. É uma necessidade. É um balão de oxigénio, que me dá a força para trabalhar. Onde quer que esteja, dá-me a sensação que quando estou a trabalhar, estou em Paris.
Quando chegou a Portugal, que país encontrou?
Portugal não tinha grande importância... Montei o ateliê, encontrei pessoal, e não tinha clientela nenhum, nem me interessava muito porque estava cheio de trabalho para fora. Continuei com o ateliê em Paris, fechei quando abri em Lisboa, no final dos anos 90. Era impossível estar em todos os lados. Agora gosto de cá estar. Os anos passam e habituamo-nos às instalações, à casa e aos amigos. Mas profissionalmente, Paris é Paris. Mas tinha poucos clientes a vir cá, eu é que me deslocava.
Havia alguém a fazer alta-costura em Portugal? Ou há?
Isso não sei. Nós fazemos alta-costura. O verdadeiro cliente de alta-costura tem sempre roupa a fazer no ateliê, nunca pára de ter.
Quem são essas pessoas?
São pessoas com muito poder de compra. Para eles 50 ou 100 mil euros por uma peça não é nada.
O que torna essas peças tão caras, a qualidade dos tecidos e o trabalho manual?
Claro. Temos tecidos caríssimos, por exemplo, a sete mil euros o metro quadrado. As pessoas mais importantes de tecidos de alta-costura são os suíços. E depois temos os franceses, os ingleses em tecidos de homem.
E os têxteis portugueses?
Não temos essa qualidade, são fibras raras. O movimento que têm esses tecidos é preciso reconhecer...Tenho um cliente que só quer botões em ouro e pedra olho-de-tigre. Cada um pode custar, em média, quatro a cinco mil euros.
E as pessoas usam essas peças para quê?
Há muitas festas privadas onde esse mundo se encontra. Conheço portugueses que têm fortunas e não gastam em roupa. Às vezes alguém menos rico é capaz de gastar mais porque tem aquela força de querer alguma coisa de bom. Uma pessoa, se tiver meios, veste-se de alta-costura desde que se levanta até que se deita.
Chegou a ter uma loja de pronto-a-vestir aqui em Lisboa. Pronto-a-vestir não era para si?
Era aqui na Avenida da Liberdade, onde está a Miu Miu. Fechei porque o meu filho que era o meu braço direito e se ocupava do pronto-a-vestir morreu e não tive hipótese de continuar. Não me podia ocupar da minha clientela privada e do pronto-a-vestir. Preferi deixar assegurado o que gosto e o que cliente está à espera de mim. A clientela que vem a minha casa está à espera de um serviço especial. Mas tenho pena...
Era uma forma de chegar a mais gente?
Sim. Estava a ocupar quatro pisos. Um ateliê no segundo, o salão privado de homem e de senhora no primeiro. No rés-do-chão e na cave, o pronto-a-vestir. Havia muito movimento, era fantástico. Quando me vejo sozinho, é triste. É sempre bom conversar. É sempre fantástico ver uma pessoa que gosta do que faço e que diz: “Só tenho pena de não ter meios.”
Veste muitas pessoas do Médio Oriente, há alguma especificidade em criar para essas culturas?
São pessoas diferentes. O Médio Oriente é um bocadinho especial. Há aqueles que gostam das coisas simples e requintadas. E há os gostam de mostrar nas festas muitos brilhos. Não é fácil trabalhar com o Médio Oriente, mas quando têm confiança, é maravilhoso. Para chegar lá, é preciso muito tempo.
Define-se como costureiro?
Acho que sou costureiro. Sim. Não sou designer. Designer é uma pessoa que desenha em massa para a indústria. Costureiro é aquele que vê a peça ao pormenor e que a sabe montar. Por isso é que me considero um costureiro. Há muitos que não gostam. Acho que os verdadeiros gostam de ser tratados como costureiros.
E o que pode dizer sobre a colecção que vai apresentar nesta quarta-feira?
É uma colecção que está dividida em duas fases porque comecei a pensá-la na época da pandemia. Em Guimarães tenho o ateliê de frente para a Alameda, onde há muito movimento. No confinamento, tive de mandar o pessoal para casa. Ia para o ateliê, olhava pela janela, não via ninguém. Comecei a buscar os tecidos, a pô-los no manequim. E tenho muitos cinzas e muitos pretos. São modelos muito tristes. Mas deixei-os ficar porque acho que faz parte. Depois os funcionários começaram a vir, começou a haver um espírito mais alegre. Aí tenho todas as cores: verdes, vermelhos, dourados… Depois tivemos este problema da guerra na Ucrânia. Há que criar algo na esperança de que vai haver paz.
O desfile continua a ser um momento muito importante para um costureiro?
É! Chegamos a um certo ponto que também gostamos de saber qual é a reacção à colecção.
É desafiante apresentar de forma independente? É um investimento grande?
Quero ser independente e as tendências sou eu que as faço. Quero ter a liberdade de criar, mas isto custa muito dinheiro. Não é só o custo das peças, mas tudo o que envolve. É preciso ter meios para isso, tem de se dizer a verdade. Claro que não tem o custo que tem em Paris, mas não é fácil.
Por que é que nunca entrou no circuito de moda em Portugal? Nunca fez ModaLisboa ou Portugal Fashion?
Isso não sei... Nunca fui convidado. Não me interessa absolutamente nada.
Não se identifica com esses eventos?
Não é não me identificar… Se apresentasse, ia apresentar a Tony Miranda. Acho que hoje é importante haver liberdade de fazermos o que queremos. Se tenho meios para apresentar de forma independente...
Sente que não é reconhecido por cá?
Não me interessa nada. Não estou à espera de que ninguém me traga alguma coisa. Se reconhecerem aquilo que faço, óptimo. Se não reconhecerem, sou feliz na mesma. Tenho lá fora quem me admira. Isso chega-me. Talvez quando desaparecer, reconheçam.