Ciência 1.7: licença para matar

Defender a precariedade é, e será sempre, defender a plutocracia. É defender um sistema onde o mesmo pequeno grupo decide e controla tudo o que se faz, quem o faz e como o faz. A precariedade na ciência não traz revoluções científicas: ela esgota-se no trabalho bruto.

“Se não fizermos isto, não restará nada para salvar.”

James Bond

A União Europeia (UE) estabeleceu o objetivo de investir 3% do produto interno bruto (PIB) em investigação e desenvolvimento (I&D) até 2030, pretendendo vir a ser mais competitiva e dinâmica economia baseada no conhecimento do mundo. Portugal investe apenas 1,7% do PIB em I&D, enquanto a média da UE é de 2,3%, e crê-se, ou pretende fazer-se crer, que bastará um dia igualarmos a média para que fique vencido todo o atraso estrutural.

Muita tinta correu sobre a atividade científica da ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato. Correu pouca foi sobre a atividade do seu ministério. Um dia depois de tomar posse, numa sessão sobre Emprego Científico e Carreiras Científicas, disse: “Por vezes, os limites estão connosco e não nos instrumentos que nós temos à nossa disposição.” Leia-se: o financiamento da investigação e as condições são mais do que boas; não tens lugar na carreira porque és burro!

Seis meses depois, disse ao Expresso: “Se integrarmos todos [os investigadores] no quadro, matamos a ciência. O sistema tem de ter alguma permeabilidade, no sentido em que há sempre uns que saem [...] e outros que entram.” Leia-se: és burro, mas és burro de carga, por isso precisamos de ti aqui, mas só até aparecer outro burro maior, pois, por muito que carregues, não entrarás na cavalariça.

A afirmação é grave, não apenas porque contradiz a própria avaliação do Programa de Estímulo ao Emprego Científico, que “requer que as instituições científicas e de ensino superior ‘profissionalizem’ a atividade de investigação e desenvolvimento”, mas porque é uma renovada defesa da precariedade. Surpreende, pois vai contra o percurso iniciado pelo seu anterior governo, contra a vontade dos trabalhadores científicos e contra as necessidades do país. Revolta, pois implicitamente afirma que “já não mata a ciência”, nem a “impermeabiliza”, que, após entrarem no sistema, os precários sejam os mesmos, ano após ano, concurso após concurso, até que a morte os pare. Pasma, pois o atual sistema, que parecer ser muito permeável, que nega a entrada a mais de 90% dos novos trabalhadores científicos e deita fora mais de 90% dos outros em todos os concursos, é afinal aquele que a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior defende.

O relatório Investigação e Inovação em Portugal e Espanha, do Observatório Social da Fundação “la Caixa”, de 3 de outubro, foi bem explícito quanto à fragilidade do nosso sistema. E já em maio de 2021, a Direção de Ciência, Tecnologia e Inovação da OCDE tinha concluído que a precariedade na investigação cria níveis de competição perniciosos, faz com que haja menos transparência nos concursos para as carreiras (porque são raros), haja menos diversidade na investigação (pois apenas se contrata para as equipas que já existem), haja aversão à novidade e à inovação (devido à curta duração dos contratos e ao risco da sua não renovação), haja um maior afastamento das mulheres na investigação e que haja a tendência para que só aqueles de meios socioeconómicos mais privilegiados consigam de facto continuar.

A defesa da precariedade, sempre proferida apenas por quem não a sofre, é um retrocesso civilizacional. Seja na ciência, seja noutro setor qualquer. Defender a precariedade é, e será sempre, defender a plutocracia. É defender um sistema onde o mesmo pequeno grupo decide e controla tudo o que se faz, quem o faz e como o faz. A precariedade na ciência não traz revoluções científicas: a precariedade na ciência esgota-se no trabalho bruto.

A senhora ministra disse que “gosta de tomar as decisões com base em evidências”, mas não precisa de perder outros seis meses a estudar dossiers para as encontrar. Basta ver os resumos dos últimos que as evidências estão lá. O que urge agora é agir, pois não agir é deixar morrer, e deixar morrer é matar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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