Elas não pediram a palavra, elas tomaram-na
Entre as Novas Cartas Portuguesas e o prémio Nobel da Literatura Elfriede Jelinek, dois filmes no Doclisboa sobre mulheres que fizeram sua a linguagem da escrita.
Comecemos por uma coisa que se ouve dizer a propósito de Mariana Alcoforado em O Que Podem as Palavras: toda a mulher que ousa pensar por si própria e levantar a voz, mais tarde ou mais cedo, vira bruxa. Parafraseamos, claro; mas, nas vozes e nas palavras de Maria Isabel Barreno (1939-2016), Maria Teresa Horta (n. 1937) e Maria Velho da Costa (1938-2020), nas suas Novas Cartas Portuguesas (1972) e nas conversas com a saudosa Ana Luísa Amaral (1956-2022) que estão na base do filme de Luísa Sequeira e Luísa Marinho, é da agência e da decisão das mulheres que se trata, da manifestação – através da linguagem que era o único caminho que a sociedade lhes deixava aberto – da sua existência enquanto seres de corpo inteiro e livres das algemas que os outros (isto é, os homens) lhes entendiam colocar.
Embora o diálogo não seja directamente entre os filmes, as palavras das Novas Cartas Portuguesas ressoam através dos anos com a escrita da austríaca Elfriede Jelinek (n. 1946), prémio Nobel da Literatura em 2004 que se remeteu ao silêncio mediático após o galardão, em resposta à hostilidade aberta com que o seu próprio país natal a recebeu (e sobretudo depois da ascensão ao poder do populista Jörg Haider). Apenas por ousar tocar, no feminino, em público, nas feridas de uma sociedade patriarcal e conservadora que nunca expiara verdadeiramente a culpa que transportava desde os tempos da sua anexação pela Alemanha nazi.
E, também, um exemplo dos fios que se tecem entre as múltiplas secções do Doclisboa, de filmes sobre a palavra, a linguagem, o feminino (e no feminino), de obras construídas “à revelia” umas das outras que os acasos da programação colocam em contacto quase telepático. (Embora se deixe aqui ao festival o desejo de uma melhor calendarização de programação que não se concentre tanto no primeiro fim-de-semana de sessões, até porque algumas repetições foram realizadas em horários matinais pensados mais para escolas do que para o grande público.)
O Que Podem as Palavras (que teve sessão única na secção Heart Beat mas que teria merecido estar na Competição Portuguesa) e Elfriede Jelinek – Language Unleashed de Claudia Müller (exibido na Competição Internacional) aproximam dois meios tacanhos e conservadores que não seriam evidentes, o Portugal ainda salazarista de 1972 e a Áustria do pós-Segunda Guerra Mundial, através de mulheres que reivindicaram para si próprias o poder da linguagem, revelando todas as suas múltiplas camadas de poder e expressão ao mesmo tempo que as faziam explodir apenas pela ousadia de as usarem. Por vezes basta apenas ter a coragem de se ser quem se é para falar verdade ao poder. Os dois filmes partilham um mesmo modo de iluminar a(s) autora(s) através do cruzamento de texto e de contexto, através de leituras e de arquivos, usados de maneira muito diferente. Jelinek não dá entrevistas desde 2004 – tudo o que se ouve na sua voz em Language Unleashed é anterior a essa data – enquanto O Que Podem as Palavras aproveita entrevistas filmadas em 2013 e 2014.
Mas em ambos os casos são as palavras e as vozes de quem escreve e de quem cria que dão o mote do que vemos. Luísa Sequeira e Luísa Marinho introduzem elementos de animação e imagens de arquivo para tentar recriar o ambiente em que as Novas Cartas Portuguesas foram criadas e recebidas. No caso de Language Unleashed, Claudia Müller alinha uma difícil corda bamba de ilustrações, paisagens e referências caleidoscópicas, construindo uma espécie de retrato alternativo da Áustria que reflecte não apenas a escrita de Jelinek mas também aquilo que cineastas como Ulrich Seidl ou Michael Haneke já andam a fazer há muito tempo.
Por aí também podemos ir a outro filme que teve exibição única no festival (secção Riscos), MUTZENBACHER da austríaca Ruth Beckermann (autora de The Waldheim Waltz e este ano jurada da competição internacional), com o seu olhar sobre um clássico da literatura pornográfica: Josephine Mutzenbacher ou a História de uma Prostituta Vienense, obra anónima que se diz ter sido escrita por Felix Salten, autor de Bambi. Sob a forma de um casting para um filme baseado no romance, Beckermann traz à superfície, de forma simultaneamente lúdica e provocadora, subversiva e aberta, a relação problemática que o mundo ocidental – e as sociedades ainda muito patriarcais – têm com o sexo. Sem o mínimo pudor quanto à comichão que essa abertura à compreensão faz a muita gente. E ainda bem.