Os doentes urgentes, as urgências, e os serviços de urgência
A montante da urgência, é fundamental aumentar a capacidade resolutiva dos centros de saúde com horários alargados, quadros de pessoal adequados, acesso a alguns exames auxiliares de diagnóstico e consulta no próprio dia.
Em Portugal, as urgências gerem cerca de seis milhões de atendimentos por ano nos serviços públicos. Em 2019, antes da pandemia, ocorreram 6,4 milhões de atendimentos nas urgências. No mesmo período, foram realizadas 30,9 milhões de consultas médicas nos centros de saúde e 12,4 milhões de consultas hospitalares das quais 3,6 foram primeiras consultas. Entre 2017 e 2022, a urgência representou 13% das consultas nos serviços públicos. No total, 62% foram classificados como amarelos, laranjas ou vermelhos, segundo a triagem de Manchester, e considerados adequados.
E os restantes serão desadequados?
Apesar das múltiplas opiniões sobre o assunto, os estudos não são completamente conclusivos e abordam a questão do ponto de vista dos serviços e das doenças, raramente incluindo as verdadeiras preocupações das pessoas.
Imaginemos a situação de alguém que se sente indisposto após o almoço. Telefona ao seu centro de saúde onde a capacidade de atendimento já foi ultrapassada. Liga à Saúde24 mas apenas obtém um aconselhamento geral ou uma triagem, sem ligação efetiva aos serviços, segundo protocolos pré-estabelecidos, sem uma verdadeira capacidade resolutiva. O tempo que gastou nas tentativas de atendimento afasta-o do trabalho onde tem de justificar a ausência. Não tendo acesso a um sistema alternativo de assistência, apenas encontra na urgência a porta aberta para o serviço de saúde que naquele momento encara como absolutamente necessário.
Tem de ser assim? Decididamente, não!
O problema das urgências tem sido abordado pela incapacidade de garantir quadros de pessoal suficientes para o seu funcionamento. Não há falta de médicos nem de formação especializada em Portugal. No entanto, a solução tem sempre passado pelo reforço de espaços e de recursos humanos. Mantêm-se os processos de funcionamento, e espera-se o milagre de que desta vez seja diferente.
A montante da urgência, é fundamental aumentar a capacidade resolutiva dos centros de saúde com horários alargados de funcionamento, quadros de pessoal adequados, ajustamento do número de utentes por médico, acesso em tempo real a alguns exames auxiliares de diagnóstico e reorganização da resposta à consulta do próprio dia, no sentido de criar condições para orientar adequadamente a doença aguda.
O mesmo acontece em relação aos cuidados continuados, onde a resposta em tempo útil apenas existe num serviço de urgência. Ainda a montante temos de melhorar o apoio pré-atendimento, modernizando os atuais telefonemas com as tecnologias de informação atualmente disponíveis e com algoritmos de decisão baseados no mais recente conhecimento científico, facilitando a comunicação efetiva e eficaz entre os cidadãos e os serviços de saúde.
A jusante da urgência temos de repensar o sistema de referenciação hospitalar, paralisado em listas de espera excessivas, e a falta de resposta assistencial em tempo útil aos numerosos doentes seguidos em consultas hospitalares, obrigados a reentrar no hospital pela porta única da urgência quando poderiam ter acesso a hospitais de dia ou consultas abertas específicas. É fundamental modernizar a administração dos serviços, muito ligada a sistemas obsoletos de financiamento e de gestão onde a urgência é um elemento importante da sustentabilidade financeira do próprio hospital. Urge redefinir o sistema de apoio à doença crónica, integrando os diferentes níveis de cuidados numa centralidade efetiva no doente que lhe permita o necessário acesso aos serviços de saúde, com processos facilitadores e humanizados, feitos a pensar em pessoas e não nos protocolos.
Por último, é fundamental criar condições para que cada um seja de facto responsável pela sua própria saúde. A literacia em saúde tem de ser uma prioridade real e não apenas um princípio de que muitos falam, mas pouco acontece.
É tempo de agir! Não basta continuar a multiplicar os recursos para as urgências, seja nas infraestruturas, nos equipamentos, ou nos recursos humanos, com mais ou menos diferenciação ou especialização. Há que atacar as causas e através delas alcançar uma mudança efetiva para uma urgência eficiente que responda ao que tem de responder, e onde tudo o resto está devidamente orientado onde têm de estar.