Ao terceiro dia de Modalisboa, eis a nova Kolovrat, o liceu de Andrez e os Luíses
Na Lisboa Social Mitra, o sábado foi recheado de desfiles sem tempo para intervalos. Os criadores trouxeram novidades e muito brilho para a passerelle.
Luís Buchinho trouxe um novo mundo; Buzina apostou na sensualidade; Filipe Augusto reinventou o vestuário tradicional; Kolovrat fez alfaiataria na nova fábrica; Carlos Gil fez uma previsão de futuro; Ricardo Andrez foi à adolescência; Luís Carvalho mudou-se para a cidade; e Luís Borges festejou a sua estreia. Foi assim o terceiro dia da 59.ª ModaLisboa. Este sábado, na Lisboa Social Mitra, não faltaram novidades, nem lantejoulas. Afinal, a moda é também uma celebração.
Na sala de desfiles, 15 minutos antes de arrancar o terceiro dia de desfiles, Luís Buchinho ensaia a apresentação pela última vez. Dentro de instantes, o primeiro coordenado entra na passerelle e não falta brilho, numa colecção que chega de um futuro distópico ─ imaginado há quase um século no romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, que o criador leu recentemente, numa versão de novela gráfica. “Fiquei impressionado como algo escrito há 100 anos se relaciona com a sociedade em que estamos a viver, sobretudo a ideia de felicidade”, começa por explicar ao PÚBLICO.
Depois de, no Inverno passado, ter apostado em tons frios, onde a roupa assumia uma função de protecção, para a próxima estação quente, Buchinho regressa à cor, na esperança de trazer uma sensação de “bem-estar”, observa, destacando os tons quentes, como o laranja, o vermelho, o cobre ou o ouro, sem esquecer o lilás que traz alguma sobriedade à sua proposta.
A cor surge em blocos e raramente em peças completas, numa colecção onde o criador joga com uma vertente mais gráfica da sua assinatura: “Há muito um jogo nas peças em que a frente tem uma cor e as costas outra. E há um trabalho muito elaborado com decotes geométricos, num acréscimo de sensualidade.”
Essa sensualidade faz-se nos detalhes ─ não, não se esqueceu das icónicas minissaias ─ mas o criador privilegiou, uma vez mais, o conforto, sem descurar a elegância. “Tem de ser algo que capte o melhor dos dois mundos. Ninguém quer a sensação de estar a vestir algo que é estranho ao corpo.” Além de que, assevera, criar peças mais comerciais “é essencial” ─ “para estarmos de pé”.
As calças têm sido um sucesso, confirma, e aqui surgem em vários formas, desde cigarette, a pantalonas ou mesmo com aberturas de lado, a destacar-se esta estação. O criador conseguiu misturar influências do sportswear e do vestuário de festa, por vezes numa só peça, através de detalhes como as lantejoulas. Não faltaram os plissados e os drapeados que marcam a assinatura de Buchinho.
Mas se há algo em que provou ser mestre foi no trabalho com os materiais. “Compramos as telas num formato básico, geralmente em cru, e fazemos todo o tingimento, tratamento de cortes de laser, aplicações de foil ou plissados, no atelier”, explica o designer, lembrando que estas técnicas tornam o material “único”. Esta estação voltam a dominar os cortes a laser, que além de “darem um ar muito contemporâneo”, dotam as peças de “uma plasticidade acrescida”, trazendo a paixão pela ilustração para o design de moda.
Esse lado mais artístico vive no padrão da colecção que, como é costume, foi o criador a desenhar, inspirado pelas falhas tecnológicas. “São manhas de cor, todas elas com tratamento que sugerem pixels”, aponta. Os coordenados foram completados por acessórios também eles assinados pelo designer, dos sapatos, às carteiras, brincos e até óculos. “As peças hoje para vingarem têm de ter muitos adjectivos acoplados. Aí as pessoas não têm como recusar a compra”, termina.
Viagem ao espaço com a Buzina
Depois de Buchinho, a passerelle encheu-se de clientes e embaixadoras da Buzina que vieram celebrar a passagem de Vera Fernandes ao cartaz principal do evento, depois de mais de dois anos a apresentar na plataforma Lab. O passo em frente é dado um mês antes de a marca de Joane, perto de Famalicão, prosseguir voos mais altos: vai apresentar-se, pela primeira vez, na Semana da Moda de São Paulo, no Brasil. “Nunca fez tanto sentido estar na ModaLisboa. Por mais semanas de moda que possa fazer internacionalmente, esta foi a primeira a dar-me a validação ─ isso é muito importante para mim”, confessa a designer ao PÚBLICO.
Para celebrar tais conquistas, Vera podia ter escolher ficar num “lugar seguro” ─ como chamou à colecção ─ mas “arrojou um bocadinho mais”. E analisa: “Trouxe algum toque de sensualidade que antes não fazia parte. Tal como as transparências e brilhos.” As texturas e cores chegaram do espaço, com destaque para o amarelo, o azul-escuro, o branco e o cinza, que deram vida a cetins e tafetás, o tecido assinatura da marca.
Não faltaram as volumetrias que marcam o percurso da Buzina ou os acolchoados que continuam presentes. São essas algumas as tais assinaturas que Vera Fernandes vai levar a São Paulo, onde apresentará uma outra colecção: “Achei que, tal como fiz com a primeira ModaLisboa, devia dar o meu melhor. Achei que devia superar-me e conseguir fazer duas colecções em simultâneo.”
Com a proposta S4f3-Pl4c3 “queria que o público sentisse aconchego e liberdade” ─ um sentimento que, acredita, a moda traz. “O mundo está caótico. Este planeta está caótico, mas podemos sempre evadir-nos para onde bem entendermos e as vezes que quisermos”, conclui.
Já Filipe Augusto estreou-se na plataforma Lab e apostou numa reinterpretação de alguns elementos do vestuário tradicional português, como os lenços e os aventais, que dão mote às camisas com laçadas ou às saias compridas em ganga em trespasse. Nesta proposta destaca-se ainda o glitter e as lantejoulas que têm sido uma constante nas colecções dos designers do certame.
A fábrica de Kolovrat
Não houve glitter em Kolovrat, mas a designer natural da Bósnia trouxe à ModaLisboa uma colecção repleta de novidades. Com base na cultura do Antigo Egipto, a criadora desenvolveu diversos padrões, um trabalho que destaca como “muito prazeroso”, mas igualmente demorado. “É imprevisível o resultado”, revela. Olhar para esta civilização, confessa, foi um processo que a deixou fascinada: “É uma cultura com a qual podemos aprender. Hoje, estamos a gastar tempo com tecnologias e não estamos a procurar conhecimento.”
Os hieróglifos aparecem recriados nas peças com humor, em símbolos feitos pelo atelier. Não falta a desconstrução que caracteriza o trabalho de Lidija Kolovrat ou as peças mais fluidas, a contrastar com as formas exageradas ─ com os cabelos a surpreender, numa versão que apelida de “Cleopatra punk”.
Mas há uma surpresa na assinatura da designer: a primeira aventura na alfaiataria. E há um motivo para isso ─ “comprei uma fábrica”, avança. As peças desta colecção foram as primeiras a serem produzidas na confecção de Kolovrat, em Almada, uma empresa que estava em vias de fechar e que a criadora quis salvar “pelo lado emocional”.
Mais do que ter um local onde produzir as suas colecções e montar um novo atelier ─ que se muda do Príncipe Real, em Lisboa, para a margem sul do Tejo ─ a designer quer montar um projecto mais vasto, com foco na formação de novos profissionais do têxtil. “É fixe ver desfiles, mas é muito difícil encontrar pessoas para trabalhar. O trabalho tem de ser levado para outro nível”, defende. Será ela própria a dar formação junto com outros profissionais.
Ao liceu com Andrez
Do Egipto avançamos para o futuro com a reflexão do consagrado Carlos Gil sobre o passado e o presente, e a forma como isso define o que ainda está por vir. O criador juntou na passerelle algumas das figuras públicas que usam as suas criações, como as actrizes Fernanda Serrano e Oceano Basílio, a apresentadora Liliana Campos ou a modelo Astrid Werdnig. Na colecção destacaram-se, ainda, os blocos de cor e (novamente) as lantejoulas.
O tempo serviu também de base à proposta de Ricardo Andrez que fez uma viagem à adolescência e ao liceu. “Fui reviver bandas, filmes, coisas que absorvi. Já tenho 40 anos, foi há muito tempo”, descreve. Tendo como ponto de partida a desconstrução e o lado andrógeno que caracteriza o seu trabalho, desafiou-se “a experimentar coisas novas e evoluir”.
Como resultado, surge “uma linguagem nova” na marca com silhuetas femininas definidas ─ sempre primou por não ter géneros definidos nas colecções. “Tentei criar uma forma nova para mulher porque era importante ter aquele elemento de baile do liceu, do vestido ou saia com cauda”, explica, acrescentando que lhes deu o seu toque, através do material utilizado.
A ganga usada nestas peças ─ um dos materiais que o criador usa em todas as colecções ─ é fruto de uma parceria com a Troficolor, uma empresa de inovação têxtil de Lousado. Neste caso, trata-se de uma ganga que transforma a textura e acabamento depois da lavagem. Este tipo de parceria é uma forma de apoiar a moda de autor portuguesa, celebra: “Quanto mais apoios tivermos, melhor. E este lado tecnológico é o que queremos abraçar.”
O padrão dominante da colecção também é inspirado no universo feminino, a partir de um floral que é ampliado até se tornarem pixels. Há igualmente um estampado de graffiti que Andrez alterou para que não fosse uma referência tão óbvia à adolescência. Até nos acessórios voltou ao liceu e ao enorme saco da “rapariga que coloca tudo na mala”. Mimetizando o acto de se ver ao espelho, o criador coloca as frentes das camisas inteiras presas no corpo dos modelos, como se não estivessem mesmo vestidas.
Luís Carvalho e a construção
E se foi um Luís a abrir o terceiro dia de ModaLisboa, são dois homónimos a encerrá-lo. Depois de no Verão passado ter reflectido sobre o lado bucólico da vida no campo, desta vez, Luís Carvalho rendeu-se à vida urbana ─ num desfile onde prestou também uma homenagem à comentadora de moda Mariama Barbosa, que morreu em Julho deste ano. “Quis levar a minha mulher e o meu homem para a cidade. São clássicos e, ao mesmo tempo, descontraídos”, começa por observar ao PÚBLICO.
O urbanismo reflectiu-se na construção e desconstrução das peças que versam sobre a estética da arquitectura contemporânea. “Trabalhei os casacos e camisas com essas formas mais geométricas, brinquei com as barras e as riscas dos tecidos”, aponta. A silhueta esguia e longa foi desconstruída com recortes nas peças, quer nas costas ou mesmo nos decotes.
Esse formalismo da cidade presente nos padrões das riscas ou nos fatos é quebrado pelo brilho: “Queria misturar o clássico com o festivo e esse lado mais descontraído.” Mas sempre sem perder o conforto que os clientes têm privilegiado, salvaguarda. De um momento para o outro, uma explosão enche a passerelle em brocados com flores e néon laranja, provando que os blocos de cor usadas neste Verão são para continuar em 2023.
Contudo, a maior surpresa estaria por vir na estreia de Call Me Gorgeous, a marca de acessórios do modelo Luís Borges, quando bailarinos de dança contemporânea ocupam a sala para um espectáculo. De um instante para o outro, a ModaLisboa transforma-se numa festa com os convidados a invadirem a passerelle para dançar.
E a celebração termina este domingo, na Lisboa Social Mitra, com as apresentações de João Magalhães, Nuno Gama, Duarte, Ivan Hunga Garcia, Valentim Quaresma, Nuno Baltazar, Dino Alves e Gonçalo Peixoto.