Sofia e uma cadeira de rodas: “Se formos pensar nos obstáculos não saímos de casa”
Há mais de meia vida que Sofia viaja acompanhada por uma cadeira de rodas. Mas não está presa. Explora, partilha as cidades e os locais mais acessíveis e incentiva todas as pessoas a irem. “Se o mundo não está adaptado, temos que nos adaptar nós.”
O que visitar aqui e ali, como organizar uma escapadinha e uma grande viagem, como reservar um hotel ou uma viagem de avião? Todos conhecemos dezenas, centenas de blogues que nos inundam com este tipo de informação. Mas são raros os que juntam ao manual de instruções um elemento diferenciador, chamemos-lhe assim. Experimente o leitor reler estas linhas, juntando uma cadeira de rodas à equação. Nós ajudamos: o que visitar aqui e ali se estivermos presos a uma cadeira de rodas, como organizar uma escapadinha e uma grande viagem sentados numa cadeira de rodas, como reservar um hotel adaptado ou uma viagem de avião para quem tem mobilidade reduzida?
Criado há cinco anos por Ana Sofia Martins, o espaço JustGo pretende promover boas práticas de turismo para pessoas com mobilidade reduzida. “É preciso muito trabalho para tudo”, resume à Fugas Sofia, acabada de chegar de uma viagem a Munique, Salzburgo e Viena, onde “quase tudo correu bem”. Nunca corre tudo, tudo bem. Desta forma, contribui para “um mundo mais acessível” e porque “de um momento para outro todos precisamos que o mundo seja acessível”. “Para um pai, uma mãe ou mesmo para nós. Um dia todos perdemos mobilidade. O mundo é de todos e somos todos iguais.”
A história de Sofia, engenheira informática de 52 anos, está cheia de viagens antes e depois de um acidente de viação quando tinha 23 anos. “Já lá vão 28 anos... Não deixei de viajar.” Costumava ser um momento em família: Em miúda viajava “muito pela Europa” de carro com os pais e o irmão. “Nunca fomos aquela família de ir para o Algarve para a praia. Viajar para nós era uma emoção, passar a fronteira, a moeda diferente... Não havia Booking, por isso íamos sempre um bocadinho à aventura, arranjar hotel em cima da hora...” Chegaram a dormir em bombas de gasolina dentro do carro. A família chegou a conduzir até à Holanda com os avós a bordo. “Éramos pequenos e era sempre uma emoção. São coisas que ficam.”
Ainda Sofia sonhava em ter dinheiro para se aventurar pelo mundo fora quando, de repente, ficou presa a uma cadeira de rodas. “Fiquei assim há quase trinta anos... E não é o mesmo que ficar assim agora. Não havia Internet, não havia informação, não vias pessoas em cadeira de rodas na rua. Foi um grande choque.”
Hoje diz que ter tido o acidente em Espanha foi “uma sorte” porque os espanhóis “são mais positivos” e o ano de recuperação num hospital em Toledo serviu para interiorizar que a vida não tinha acabado e que havia muito a explorar. “Éramos um grupo enorme de pessoas da mesma idade, cada um em pior estado do que o outro. Ao fim-de-semana íamos para casa uns dos outros e o meu médico, que era excepcional, deixava-nos sair à noite, literalmente para os copos. Era uma festa, apesar de ser uma transformação brutal. Estás numa cadeira de rodas, mas podes sair e podes divertir-te.”
Estávamos no século passado. “Se as pessoas hoje se queixam de falta de acessibilidades, na altura não existiam sequer.” Sofia juntou-se a alguns amigos e fez duas roadtrips pela Europa. Não se lembra bem do roteiro, mas lembra-se que “não era autónoma” e que não teve “grande prazer” nessas viagens. “O meu irmão costumava dizer que o melhor dia das férias era quando voltávamos a casa. Mas não deixei nunca de ir. Às vezes fazia-o mais pela minha família. Eu não queria que os outros sofressem por eu estar a sofrer.”
No projecto JustGo guarda alguns artigos de opinião que são verdadeiros manuais de instruções sobre problemas banais com que se deparam pessoas com mobilidade reduzida. E há vários que são incontornáveis, como por exemplo voar. “Andar de avião é das coisas mais desconfortáveis que existe”, diz Sofia. Se marcar a assistência “já é fácil”, chegar até ao lugar ou ir à casa de banho minúscula é um filme que se repete ano após ano. “É não dormir, não comer, quase não respirar”, descreve. De comboio a coisa é mais pacífica, mas não existem viagens relâmpago, já que tudo tem que ser marcado com a devida (muita) antecedência. “De repente quero ir para a esquerda e não posso”, lamenta Sofia, que na Europa começa a sentir outro conforto no momento de apanhar um transporte público depois de aterrar. “Os obstáculos são muitos. E continuam a ser muitos apesar de as coisas estarem muito melhores.”
Hoje, Sofia viaja na companhia do marido Fernando, que programa “tudo ao pormenor” (também a fotografa para o blogue e Instagram) e por isso conhece “os buracos todos” por onde vão passar. Por falar nisso, houve um em Londres que lhe provocou uma fractura do colo do fémur e uma série de complicações e de operações — a partir daí não dispensa uma roda extra na frente da cadeira, uma freewheel que lhe dá outra estabilidade e segurança.
Outro problema aparentemente banal é a marcação de hotel. OK, é quase certo que os hotéis de quatro, cinco estrelas têm um ou dois quartos adaptados, mas a) “têm que estar disponíveis”, b) normalmente o quarto standard, com preço standard, “não é o adaptado” ("Tenho que pagar mais e logo aí começa a discriminação") e c) o que parece nem sempre é. “Uso o Booking. Tem filtro, mas não é fiável”, diz Sofia, que pede sempre fotografias do quarto e mesmo assim tem surpresas normalmente desagradáveis.
Para muitos hotéis, sinónimo de acessibilidade é “ter uma casa de banho grande”. “Uma coisa é acessibilidade, outra é inclusão. Inclusão é incluir num todo. O que interessa poder entrar num museu se depois lá dentro não posso usufruir de todas as actividades? Por isso é que muitas vezes, em palácios ou castelos, pagamos meio bilhete ou não pagamos. Mas não é isso que queremos. Não queremos borlas. Queremos poder usufruir de tudo o que as outras pessoas têm acesso. Isso é inclusão”, sublinha Sofia, há 17 anos na Câmara Municipal de Setúbal (Sistema de Informação Geográfica).
Procuram-na pessoas que querem sair “e não sabem como ou não têm coragem”, pessoas que vão abrir um negócio inclusivo e querem dicas (como os fundadores da LevarTravel que a levaram num grupo a Istambul) ou simplesmente pessoas que se sentem inspiradas, pessoas de cadeira de rodas que já foram à Índia ou à inacessível Muralha da China. “Não pude lá andar, mas vi-a e foi uma sensação maravilhosa.”
E há muitas “índias” por todo o lado, cidades cheias de “buracos” físicos ou nem por isso, as pontes de Veneza ("cheias de degraus"), as escarpas e os hotéis inadaptados da Capadócia, um caminho de gravilha no palácio em Estocolmo, a escorregadia calçada portuguesa e até o Porto, “das piores cidades”, feita de grandes inclinações, passeios estreitos e não rebaixados. “Basta ir a Espanha e ver a quantidade de cadeira de rodas que andam na rua. Tem a ver com acessibilidades.”
Por “estratégia”, Sofia só partilha no seu blogue “aquilo que está bem e acessível”. E, volta e meia, bate na tecla “inclusão não é caridade nem favor”, que é como quem diz que os investidores deviam “encarar a mobilidade reduzida como uma oportunidade de negócio”. “Quando viajo, não viajo sozinha. Quando vou jantar fora, não janto sozinha. Se o restaurante não for adaptado, perde um grupo.”
Sente à flor da pele a “degradação” da sua condição física e consequente perda de mobilidade. “As coisas daqui para a frente vão-se tornando cada vez mais complicadas.” Por isso, Sofia ainda gostava de fazer “essas grandes viagens” que sabe que daqui uns anos não vai conseguir fazer. “Sinto alguma urgência de fazer algumas viagens. Há tanto mundo...” Gostava de “fazer a conta ao mundo”. Já reduziu o horário de trabalho e o ordenado. E não tem medo do mundo. “Se formos pensar nos obstáculos não saímos de casa, não vale a pena. Se o mundo não está adaptado, temos que nos adaptar nós. Temos que ir.”