Fantasmas da Amazónia fazem uma aparição nas ruínas romanas de São Cucufate

A artista plástica brasileira Janaína Wagner é convidada do encontro Antropocénica, que está a decorrer na Gulbenkian, e mostra o seu filme este domingo no Alentejo.

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Curupira e a Máquina do Destino, de Janaína Wagner dr

Um encontro entre um ser mítico e uma personagem de ficção algures numa Estrada Fantasma e numa cidade chamada Realidade, no mapa da Amazónia, onde existe também um homem, real, que criou uma cidade imaginária em cuja existência muitos acreditam. É uma Amazónia sem fronteiras entre o real e o mágico que faz uma breve aparição em Portugal através de duas obras: o filme Curupira e a Máquina do Destino, da artista plástica brasileira Janaína Wagner, que pode ser visto no domingo, dia 9, nas ruínas da Villa Romana de São Cucufate, na Vidigueira, Alentejo, na presença da realizadora; e Tatuncanara, filmagem do cineasta e documentarista brasileiro Jorge Bodanzky com concerto ao vivo de David Maranha, Manuel Mota e João Valinho (apenas esta sexta-feira, depois a peça mantém a banda sonora, mas já não tocada ao vivo) na galeria Appleton, em Lisboa.

Janaína Wagner e Jorge Bodanzky estão em Portugal a convite da Antropocénica, o primeiro de três encontros internacionais transdisciplinares que se propõem discutir o impacto da era geológica do Antropoceno sobre o planeta e em particular sobre a Amazónia, foco desta primeira edição, que está a decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e que ruma ao Alentejo este fim-de-semana. O objectivo dos organizadores da Antropocénica, Silvio Cordeiro, Dirk Michael Hennrich e Maria da Conceição Lopes, é realizar o encontro de 2023 no Brasil e o de 2024 em Cabo Verde.

Os debates em Lisboa, que se iniciaram precisamente com comunicações de Jorge Bodanzky e Janaína Wagner, assim como de Sydney Possuelo, especialista em povos indígenas e antigo responsável da Fundação Nacional do Índio (Funai), e do arqueólogo Claide de Paula Moraes, podem ser acompanhados através do Canal Antropocénica, no YouTube. O indigenista Sydney Possuelo vai ainda fazer uma palestra ilustrada no próximo dia 11 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na qual falará sobre os povos isolados e os territórios indígenas da Amazónia.

Curupira e a Máquina do Destino, o filme de Janaína Wagner, foi rodado em Fevereiro de 2021 numa estrada ligada à Transamazónica BR-230 que, por ter sido construída, destruída e de novo construída, ficou conhecida como Estrada Fantasma BR-319 e na qual existe uma cidade chamada Realidade. É para esse território surreal, e ao mesmo tempo real, que a artista convoca Iracema, a jovem prostituta do filme Iracema – uma Transa Amazónica, que Bodanzky filmou nos anos 70 (e que passa este sábado, às 18h, no Cinema-fora-dos Leões da Universidade de Évora), e ainda a curupira, uma figura mítica que anda na floresta e que tem os pés virados ao contrário para desorientar os que a perseguem.

Esta é, nas palavras de Janaína Wagner, “uma história de amor e vingança entre duas figuras de tempos históricos diferentes que existem na fronteira entre ficção e realidade: Iracema fantasma parte nas encruzilhadas das estradas rectilíneas do Amazonas para conjurar a curupira e vingar o futuro”. É, de alguma forma, uma resposta ao slogan de uma antiga campanha do Ministério do Interior brasileiro que impunha (demasiada) realidade, proclamando “Chega de lendas, vamos facturar!”.

Não parece possível impor o fim das lendas por decreto, muito menos na Amazónia, e Jorge Bodanzky, que desde Iracema tem regressado muitas vezes a este território (é o autor da série Transamazónica, uma estrada para o passado, que pode ser vista na HBO Brasil), é testemunha privilegiada disso.

No pequeno filme que está na galeria Appleton, ele apresenta-nos Tatunca Nara, figura real, um alemão que diz ser filho de uma freira e herdeiro de uma cidade extraordinária, Akakor, perdida algures na Amazónia, onde habitam os Ugha Mongulala. Trabalhando com outro alemão, o repórter Karl Brugger, assassinado no Brasil em 1984, Bodanzky acompanhou Tatunca Nara numa das suas viagens em busca da cidade maravilhosa, nunca vista por outro ser humano.

Bodanzky nunca se deixou convencer pelos relatos de Tatunca, mas o mesmo não aconteceu com Karl Brugger. O repórter acabou por escrever A Crónica de Akakor, que envolve extraterrestres e mistérios da floresta, e que teve inclusivamente direito a um prefácio de Erich Von Daniken, autor do livro Eram os deuses astronautas?. Von Daniken terá ficado impressionado com as extraordinárias coincidências entre o seu livro e Akakor, ignorando que Tatunca o lera e copiara alguns dos símbolos do livro, afirmando que eram a escrita do seu povo. Os portugueses podem agora ter um vislumbre de Tatunca – mas não de Akakor, que acabou por nunca ser filmada, ou sequer encontrada – na galeria Appleton, até 20 de Outubro.

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