Bolsonaro não cede nem mais um centímetro de terra aos índios
As principais competências do organismo estatal que historicamente geriu a demarcação de terras indígenas foram transferidas para o Ministério da Agricultura, controlado pela grande indústria agrícola.
Passavam poucas horas da sua tomada de posse como Presidente do Brasil quando Jair Bolsonaro dava a machadada final no organismo que durante décadas assegurou a delimitação e a atribuição de terras às comunidades indígenas. Um dos primeiros actos legislativos da era Bolsonaro é um verdadeiro presente para os grandes proprietários rurais e põe em causa o sistema de redistribuição de terras, garantido pela Constituição.
Uma das medidas provisórias assinadas por Bolsonaro logo na primeira noite como chefe de Estado brasileiro prevê a transferência das principais competências até agora atribuídas à Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, incluindo a identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas. A deputada dos Democratas (DEM) Tereza Cristina foi a escolhida por Bolsonaro para a pasta da Agricultura, e é uma das mais destacadas líderes da “bancada do boi”, assim chamada por congregar parlamentares alinhados com os interesses dos grandes proprietários rurais.
Com a passagem das competências nucleares da Funai para um ministério dominado por apoiantes do agro-negócio, o futuro das demarcações de terras indígenas parece negro. Estão em fase de estudo 115 processos de demarcação de terras, de acordo com a própria Funai. Sonia Guajajara, ex-candidata a vice-Presidente pelo Partido Socialismo e Liberdade e um dos rostos da causa indígena, condenou a decisão de Bolsonaro, dizendo que “o desmanche já começou”.
Bolsonaro disse que tem como objectivo “integrar estes cidadãos”, dizendo que os índios vivem em comunidades “isoladas” e são explorados por organizações não-governamentais. “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONG”, escreveu o Presidente no Twitter.
A delimitação de terras e a sua entrega pelo Estado às comunidades indígenas é garantida pela Constituição – cerca de 14% do território brasileiro está destinado para este fim. Até agora, cabia à Funai a realização de estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que determinavam a delimitação de uma dada área para uma exploração exclusiva das comunidades indígenas. E era também este organismo criado nos anos 1960 que delimitava fisicamente as terras, após decisão do Ministério da Justiça, e que indemnizava os ocupantes não-índios.
Há muito que a Funai era uma pedra no sapato dos grandes proprietários rurais que desejavam uma marcha atrás nas delimitações de terras. Desde a chegada de Michel Temer ao poder que o organismo já vinha a ser alvo de várias investidas – os deputados ruralistas foram cruciais para que Dilma Rousseff fosse destituída e travaram a abertura de uma investigação a Temer. Em Março de 2017, 87 cargos da Funai foram extintos e, pouco depois, a Câmara dos Deputados abriu uma comissão de inquérito que acabou por indiciar mais de 60 funcionários por suspeitas de corrupção. Em Junho do mesmo ano, a alta-comissária da ONU para os Direitos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, alertava para o enfraquecimento da Funai: “Acho que há uma tentativa do Governo de reduzir a protecção dos direitos indígenas.”
Para além do mais que provável congelamento de novas delimitações, Bolsonaro não tem escondido a intenção de reverter algumas demarcações já aprovadas, como a da Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde o solo é fértil e rico em minérios. “Você tem como explorar de forma racional”, disse Bolsonaro no mês passado, lembra o El País Brasil. Espera-se, porém, uma dura batalha judicial, por causa do elevado valor constitucional atribuído às demarcações indígenas.