Meninos de ouro

O filho único é muitas vezes transformado em “menino de ouro”, superprotegido, mimado, foco de toda a família. Filho único e muitas vezes também neto único…

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"A superproteção pode representar um fator negativo no crescimento da criança" Adriano Miranda / arquivo

Portugal tem vindo, nos últimos cinco anos, a recuperar lentamente a taxa de natalidade, após um decréscimo acentuado devido, em grande medida, à crise económica. Ainda assim, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, em 2020 nasceram menos 84.296 bebés do que em 2014, o que representa uma quebra da natalidade de 2,6%.

São agora necessárias mais mães para se atingir o mesmo número de crianças. Em 1960 eram necessárias apenas três mulheres para gerarem dez bebés; já em 2014 esse número aumentou para oito mulheres, de acordo com o inquérito de fecundidade 2013, FFMS/NE.

O número médio de filhos por mulher em 1960 era de 3,2, enquanto, em 2014, baixou assustadoramente para 1,23.

Hoje, no nosso país, as mulheres têm, em média, o primeiro filho aos 31 anos, quase cinco anos mais tarde do que acontecia há 20 anos, com consequências sociais e económicas conhecidas e temidas.

O facto de se ser mãe cada vez mais tarde, a incompatibilidade do emprego com a vida familiar, o medo de não se conseguir dar aos filhos o que se entende serem os meios para que venha a ter um futuro muitas vezes melhor que o dos progenitores são fatores que contribuem para esta situação.

Razões várias e sobejamente conhecidas contribuem para esta realidade, que nos coloca no nível mais baixo de natalidade no contexto da Europa a 27.

Esta situação deverá fazer soar o alarme dos governos para que se debrucem, com urgência e de forma mais substantiva, sobre este “inverno” demográfico e deem às famílias apoios para que a situação se inverta e a família média portuguesa deixe ser a de “filho único”.

Por isso, o filho único é muitas vezes transformado em “menino de ouro”, superprotegido, mimado, foco de toda a família. Filho único e muitas vezes também neto único…

Proteger, sim, mas com moderação. A superproteção pode representar um fator negativo no crescimento da criança. Por conseguinte: Proteção, sim! Superproteção, não!

Existe uma tendência para confundir estes dois conceitos e a verdade é que as crianças superprotegidas podem apresentar, mais tarde, algum atraso no seu desenvolvimento. Atraso físico, intelectual e linguístico, visto se prolongar o tipo de fala e de vocabulário “à bebé”, porque é assim que a família nuclear e até alargada fala com a criança.

A tendência que existe em apaparicar o filho único, substituindo-o em tarefas, quando já capacitado para tal — comer, lavar os dentes, tomar banho, atacar os sapatos —, revela-se um erro muito comum, que deve ser evitado. A autonomia da criança aumenta as suas habilidades, as suas competências e a sua independência, tão importantes em fase adulta.

Os pais não desejam que os filhos sofram ou experimentem dificuldades. Porém, facilidade nem sempre é sinónimo de felicidade. Devemos desafiá-los, deixá-los errar para aprenderem com esses mesmos erros. Permitir que se sintam frustrados ou vitoriosos com os seus atos é uma decisão crucial para o seu desenvolvimento como pessoas.

Deixemos as crianças brincar, cair, “raspar” um joelho, sem que isso seja visto como uma desgraça ou motivo de alarme.

Devem ser as crianças a encontrar as suas próprias respostas e não a ficar à espera que terceiros resolvam. Deixemo-las acreditar que são capazes de resolver os seus problemas.

A criança superprotegida pode sentir-se, sem que disso nos demos conta, sufocada e diminuída na sua capacidade de crescer e amadurecer, saudável e feliz.

Um outro conselho, que a prática de quase quatro décadas e meia de ensino e de estudo destas questões me permite, é o de que os pais, ou outros adultos significativos, não privem os filhos de participarem em atividades escolares, jogos, corridas, passeios. A inibição face a riscos poderá contribuir para uma sensação permanente de insegurança e para atitudes antissociais.

Ao superproteger e manter os filhos numa “bolha”, damos-lhes uma visão distorcida da realidade.

Habituar a criança a tudo receber pode levá-la a ter dificuldade em compreender que nem tudo é possível e que há muita coisa que está para lá do seu alcance ou que lhe exige esforço, dedicação e capacidade de resiliência.

Por estes e demais motivos devemos ser levados a refletir seriamente naquilo em que queremos transformar os filhos únicos. Eles não são, não devem ser a razão de viver das famílias. Não são a família, são, isso sim, parte de um todo comum a que chamamos família.

Reconhecemos que, sendo únicos e insubstituíveis (qualquer filho é insubstituível, que fique claro), os devemos tratar como tal. Merecem mais estímulos, mais diversidade na oferta lúdica, mais atenção à forma como preenchem o tempo livre, uma vez que não o podem partilhar com irmãos.

No entanto, o excesso de atividades extracurriculares também pode ser visto como superproteção. Como são “sós”, têm de estar ocupados com múltiplas atividades. Não! Deixemo-los criar, imaginar, construir o seu mundo, mas longe, muito longe das horas sem fim ligadas às tecnologias.

Um “mito urbano”, que é necessário deixar cair, consiste nos traços de personalidade: os filhos únicos são vistos como futuras pessoas egoístas, egocêntricas, incapazes de partilhar. Esta precessão tem-lhes atribuído uma péssima reputação social, que em nada corresponde à realidade.

Não há evidência científica, que comprove, que a capacidade de socialização seja diferente daquela que têm as crianças com uma dúzia de irmãos. Muito pelo contrário, numerosos estudos concluem que os filhos únicos são portadores de caraterísticas que os definem como mais criativos, mais generosos, com melhor rendimento escolar, com maior autoestima, mais focados nos objetivos a atingir.

Sim. São, adoravelmente de “ouro”. Não os estraguemos.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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