António Saraiva: “Anúncio extemporâneo” do ministro da Economia “penalizou” baixa do IRC
Presidente da Confederação Empresarial de Portugal acredita ser possível acordo de rendimentos com baixa selectiva de IRC e mexidas na derrama. Racionamento de energia neste Inverno é inevitável
Em entrevista ao programa Hora da Verdade do PÚBLICO/Renascença, o presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), António Saraiva, explica como a intenção inicial do Governo de António Costa sempre foi a de reduzir o IRC de 21% para 19% de forma transversal e mostra-se confiante na assinatura do acordo de competitividade e rendimentos, negociado na concertação social.
Será possível ter um acordo de rendimentos e competitividade antes mesmo da entrega do Orçamento do Estado (OE) para 2023?
É um dos objectivos para que nos tem desafiado o Governo. A meta é muito apertada, uma vez que o Governo quer apresentar a proposta na segunda-feira. Mas, existindo boa vontade de todas as partes, Governo e centrais sindicais, tudo é possível. O Governo gostaria de ter um acordo assinado antes do dia 10. Se tal não for possível, é possível que o acordo acompanhe a discussão do OE em sede parlamentar.
O fundamental é termos estabilidade política – o que o Parlamento já tem – e estabilidade social com um acordo de médio prazo que, em cima de toda esta imprevisibilidade que as actividades económicas hoje registam, dê alguma estabilidade e alguma melhoria dos factores de competitividade para que assim também possamos melhorar a política salarial.
A proposta do Governo é um aumento de 4,8% dos salários por ano até perfazer os 20% de aumento. Presumo que nessa altura as partes ainda estejam afastadas. Quais as contrapartidas necessárias do ponto vista da CIP?
Primeiro, gostava de dizer que nós já demonstrámos ao Governo que desde 2020 estamos a convergir com a média da União Europeia no peso de remunerações no PIB. Mas este esforço a que o Governo quer obrigar a economia de 4,8% ao ano durante os próximos quatro anos implica um aumento da massa salarial de 1000 milhões de euros por ano. Em quatro anos são 4 mil milhões de euros. Obviamente tem que existir contrapartidas para este enorme esforço.
Que contrapartidas seriam essas?
Não podem ser, como até agora foi apresentado, meras previsibilidades de ter um texto muito vago. Aquilo que nós solicitamos, na melhoria dos factores de competitividade, são redução e previsibilidade da carga fiscal. Quando digo redução da carga fiscal, falo na redução da taxa nominal de IRC, dos 21% para os 19%.
Inicialmente começámos com uma discussão dessa baixa ser transversal. Depois, pelos episódios que todos conhecemos, o Governo abandonou essa ideia e hoje o que nos está a apresentar nas discussões bilaterais é que o IRC venha a baixar com diferenciação positiva para determinadas empresas que cumpram alguns critérios, a saber: a evolução das tabelas salariais na contratação colectiva, o achatamento das remunerações em públicos masculinos e femininos, enfim, haver aí uma maior harmonia na distribuição salarial, ou seja, de determinadas práticas das empresas levarem a reduções do IRS. Mas o IRS não é a bala de prata, como eu tenho referido.
Essa proposta do Governo é fechada?
Não, estamos ainda num texto aberto. Estamos a caminhar no sentido de se obter o tal texto de acordo em sede de concertação. Mas isto resulta de reuniões bilaterais que os parceiros e o Governo vêm desenvolvendo para atingir esse mesmo texto.
A proposta do Governo é de tal maneira fechada que a posição da CIP de reduzir a taxa dos 21 para os 19% está completamente afastada?
Como eu estava a explicar, a redução do IRC não é a bala de prata na redução da carga fiscal. É uma das variáveis mas não é a única variável porque nem todas as empresas, infelizmente, geram lucros. O IRC é apenas uma questão de coerência. Gostaríamos de ver cumprida a reforma do IRC como foi em tempos lá atrás, com outros governos, aprovada.
A par do IRC, pretendemos a eliminação da derrama estadual, sendo que 1% de redução do IRC é uma perda potencial de 100 milhões de euros (200 milhões se fosse 2 pontos percentuais), enquanto a derrama são 600 milhões. Daí a dificuldade maior que o Governo tem em eliminar a derrama e conceder alguma modulação na redução do IRC. Temos ainda a questão das tributações autónomas. Nós temos a questão dos lucros retidos e reinvestidos, temos a questão do reporte dos prejuízos fiscais, temos o financiamento às empresas e ao investimento.
Há um conjunto de questões fiscais que queremos neste pacote de medidas. Queremos ver a carga fiscal reduzida nestes itens que referi e previsibilidade para que não tenhamos, orçamento após orçamento, alterações invariavelmente para subir a carga [fiscal].
Ainda é possível haver uma redução transversal do IRC? O ministro da Economia falou nisso, ainda na última reunião de concertação social voltou a defendê-lo, embora o ministro das Finanças tenha outro discurso. Para onde é que acha que vai tender?
Acho que vai tender para a redução com diferenciação ou discriminação positiva, como quiser chamar. Não vai haver uma redução transversal porque no início, quando estávamos a trabalhar na possibilidade da redução transversal, o ministro da Economia anunciou na feira do Calçado, em Milão, e fora de um tempo de apresentação da proposta de Orçamento...
Com isso estragou a negociação?
O Governo pretendia que esses anúncios da redução da carga fiscal fossem em simultâneo com a apresentação da proposta do OE porque não quis revelar antes de a proposta ser apresentada ao Parlamento e aos deputados o que ela viria a conter, embora paralelamente já estivesse a trabalhar com os parceiros sociais naquilo que seria essa redução da carga fiscal que tem que ser forçosamente plasmada na proposta de Orçamento.
O ministro da Economia, com a boa vontade que o caracteriza e na defesa do interesse das empresas, anunciou previamente aquilo que já vinha sendo trabalhado e, de facto, penalizou esse objectivo. No Governo e tanto quanto sei, no seio do PS, a medida já não era muito bem vista. O anúncio extemporâneo levou a que o Governo a tivesse abandonado e hoje o que está a ser trabalhado nas reuniões bilaterais é a redução, mas de forma não transversal, só para incentivar determinadas práticas empresariais.
Isto fragilizou a posição do ministro da Economia nestas negociações? A CIP, neste momento, privilegia conversas com o ministro das Finanças em concertação social?
Não faço essa leitura. Como lhe compete, deve ser o ministro das empresas, deve defender o interesse das empresas e como eu tenho defendido que é tempo de a Economia se sobrepor às Finanças...
Mas a palavra do ministro da Economia agora vale pouco ou não?
Nós, nas empresas, estamos habituados a divergências entre o director comercial e o director financeiro porque invariavelmente o director comercial quer mais vendas, o director financeiro quer suster custos e, por isso, estas questões até no Governo são compreensíveis. A questão é melhorarmos os factores de competitividade, reduzindo a carga fiscal. O ministro das Finanças, primeiro que todos, terá que averiguar, conceder, abdicar de algumas das suas teses e beneficiar a economia, reduzindo esta brutal carga de impostos que temos.
Tem receio que Fernando Medina possa vir a ser uma espécie de Centeno II? No sentido em que Mário Centeno conseguiu o excedente orçamental histórico em Portugal e nós estamos num contexto em que a receita fiscal está a aumentar e em que há mais dinheiro que podia ser distribuído.
São pessoas com características diferentes. Obviamente que o Ministério das Finanças, pela sustentabilidade das contas públicas, pela redução do défice a que estamos obrigados, tenta obter os melhores resultados. Não é menos verdade, como acaba de dizer, que o país está a gerar para o ministério e para os cofres do Estado excedentes, desde logo pelo IVA, mas não só. A própria receita da Segurança Social tem estado...
Se, como se está a trabalhar, viermos a celebrar este acordo, a massa salarial vai aumentar 1000 milhões de euros/ano e desses 1000 milhões o Estado vai arrecadar uma parte substancial. Quer pelos 23,75% que cobra às empresas pela TSU, quer dos 11% da Segurança Social de cada trabalhador. O próprio ordenado mínimo, nestes valores que estamos a falar à volta dos 759,76 euros, vai levar o Estado a arrecadar 242 milhões de euros de receita extraordinária. Por isso, atendendo a esta receita suplementar que o aumento salarial lhe vai trazer, é razoável que o ministro das Finanças ceda, conceda à economia alguma dessa extraordinária e desta suplementar receita, aliviando a carga fiscal.
Do que tem visto até agora, o ministro das Finanças está a ser razoável?
Tem demonstrado razoabilidade, tem entendido as nossas preocupações da enorme carga fiscal, quer as que temos nas empresas, quer as das famílias e, por isso, está a construir-se uma redução da carga fiscal para uns e para outros, para as empresas e para as famílias, em sede de IRS.
O que é que acontece às empresas com uma subida destas, até aos 760 euros, do salário mínimo nacional? Em tempo de inflação, essas contas estão feitas?
Essas contas estão feitas e preocupa-nos porque as empresas estão a sofrer uma tempestade perfeita. Ainda estamos com os efeitos covid, com reduções de encomendas, com reduções de receita, elevados custos de matérias-primas e interrupção das cadeias de abastecimento E agora vem somar-se a guerra, os brutais aumentos dos custos energéticos, as matérias-primas e a sua escassez. As empresas estão com tesourarias depauperadas.
Se em cima das mais fragilizadas há brutais acréscimos dos custos de produção ou dos seus custos de porta aberta, temos de ter alguma razoabilidade. Da mesma forma que temos que proteger camadas socialmente mais fragilizadas, temos que proteger camadas empresariais, tipologias empresariais mais fragilizadas e expostas a uma concorrência perversa.
Relativamente à taxa sobre lucros excessivos, a UE tem uma posição muito clara e favorável. Como representante das empresas, como é que vê este movimento a nível europeu de taxar lucros considerados extraordinários e inesperados?
Por vezes, o ser humano reage por impulso, por moda, por tendências e pelo politicamente correcto ou porque se tem em vista as próximas eleições e, por isso, muitas vezes tomam-se decisões mais emotivas que racionais. Lucros excessivos? As empresas fizeram-se para gerar lucros. A maneira de repartir esses lucros, de distribuir a riqueza, é que nos deve mobilizar a todos. Criação de riqueza é o fim em vista das empresas e depois deve-se fazer a distribuição correcta e equilibrada, para evitar as desigualdades, porque as desigualdades geram populismos e daí as ameaças às democracias.
Então e quando as empresas geram avultados prejuízos? Temos a mesma metodologia para lhes ir acudir? Temos de ter aqui alguma sensatez. Se existirem, e nalguns casos existem, lucros excessivos resultantes desta situação, é bom que se veja com esses sectores. O caso português tem especificidades. A União não é homogénea. Nós, em Portugal, já temos a CESE. Essas empresas já têm uma carga de impostos que já são impostos extraordinários.
Houve pouca sensatez e muita emoção?
Acho que houve alguma emotividade.
Segurança Social: há motivos de preocupação, a seu ver, em relação ao futuro das pensões?
Há reformas que têm que ser feitas no país e nós temos defendido três delas: a reforma da administração pública, a reforma da justiça e a reforma fiscal. A par disso, há outras que têm que ser discutidas em sede própria, quer no Parlamento, quer em concertação social.
A reforma da Segurança Social tem que ser feita e pensada para lhe dar sustentabilidade. Não creio que estejamos ameaçados. Há cada vez mais receitas extraordinárias da Segurança Social. Estamos, felizmente, com um nível de emprego que nos surpreende agradavelmente e esperemos que assim continue. Há sustentabilidade, mas temos que prever o futuro. O ser humano, quando não muda por inteligência, acaba por mudar por necessidade. Por isso, é bom que enquanto o possamos fazer por inteligência e com tempo, o façamos.
Gostava de ainda fazer uma pergunta sobre as empresas, a Europa, o PRR. Tem havido notícias de que são as grandes empresas que estão a absorver os maiores fundos europeus. O Presidente da República tem falado recorrentemente sobre a necessidade de se fazer um escrutínio à aplicação dos fundos. Como é que está a ver esta questão? Com preocupação?
Estou a ver com preocupação a fraca execução dos fundos. Quando se diz que as grandes empresas estão a absorver fundos, recordo que se criaram as Agendas Mobilizadoras que envolveram empresas, centros tecnológicos, universidades e é através dessas Agendas Mobilizadoras que está em marcha o acesso. O que eu critico é a fraca execução do PRR. Temos uma janela temporal muito curta e por isso temos aconselhado a que o Governo peça a Bruxelas algum alargamento do prazo, porque a pandemia e agora a guerra, vêm trazer variáveis diferentes ao problema. É desejável que se reveja o PRR nas suas metas.