Curador do museu estatal russo Hermitage demite-se e deixa o país

“Não quero ter nada em comum com a Rússia de hoje”, escreveu Dimitri Ozerkov, responsável do departamento de arte contemporânea do museu de São Petersburgo.

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Dimitri Ozerkov na Bienal de Veneza, 2011 Marco Secchi/ getty images

Dimitri Ozerkov, que tinha a seu cargo o departamento de arte contemporânea do museu Hermitage, em São Petersburgo, onde trabalhava há 22 anos, anunciou este domingo no Twitter que tinha deixado o cargo e abandonado o país.

Uma decisão que já tomara no dia em que as tropas russas invadiram a Ucrânia e que, conta agora, se tornou irreversível no final de Junho passado, quando o director-geral do Hermitage, Mikhail Piotrovsky, deu uma entrevista à imprensa defendendo a invasão da Ucrânia e utilizando a terminologia oficial de “operação especial” para designar a guerra. “As nossas recentes exposições no estrangeiro são uma poderosa ofensiva cultural, uma espécie de ‘operação especial’, de que muitos não gostam. Mas estamos a chegar, e não podemos permitir que ninguém interfira com a nossa ofensiva”, afirmou Piotrovsky, uma figura muito próxima de Putin, ao jornal governamental Rossiskaïa Gazeta (Gazeta Russa).

“É a mais importante demissão em museus russos desde que Vladimir Opredelenov, director de desenvolvimento digital no Museu Estatal Pushkin de Belas Artes, deixou o cargo imediatamente após ter tido início a invasão da Ucrânia”, diz o site da revista The Art Newspaper.

Ilustrando o seu tweet com a fotografia de um sinal de saída no interior de um avião, Ozerkov, numa alusão à sua opção pelo exílio, termina o texto saudando “todos aqueles para quem a palavra grega ‘êxodo’, usada pelos redactores da Septuaginta [a versão grega da Bíblia hebraica], se tornou a única saída para a situação presente”.

O curador não menciona o destino que escolheu para viver, mas num segundo tweet, no qual diz gostar muito dos habitantes do local onde se encontra, publica uma imagem que, segundo a Art Newspaper, poderá ter sido captada em Isfahan, no Irão.

Logo no dia 24 de Fevereiro, quando as tropas russas entraram na Ucrânia, Ozerkov retirou do Twitter a sua foto de perfil, justificando o gesto com esta mensagem: “Tenho vergonha de olhar os outros nos olhos por causa das notícias de hoje”. Até ao anúncio da sua demissão, não voltara a publicar nada. Agora explica que logo nessa altura começou a transferir as responsabilidades que tinha no museu e adianta que já não exercia quaisquer actividades desde princípios de Março. Deixou ainda as funções que desempenhava noutras instituições e projectos e demitiu-se do Conselho de Cultura do governo local.

“Depois de a Rússia ter enviado as suas tropas para a Ucrânia, o diálogo e o respeito deixaram de ter qualquer significado na Rússia, as notícias foram substituídas por propaganda que nada diz dos numerosos crimes contra a população civil de que as forças armadas russas são acusadas”, escreve Ozerkov no texto em que anuncia a sua demissão e exílio. “Como cidadão russo, encarei esta vergonha como algo de que também era culpado, e partilhei esta opinião, o que só me deixou como opção deixar de fazer seja o que for na Rússia de hoje, ou para ela.”

Património a saque

A decisão do curador do Hermitage coincide com a anexação pela Federação Russa das regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporijjia e Kherson, na sequência de referendos ilegais, uma medida agora formalizada com a assinatura de “tratados de adesão” que a generalidade dos países não reconhece e já condenou. Ora, uma das consequências mais do que prováveis desta anexação será a perda, para a Ucrânia, de milhares de obras de arte e peças arqueológicas conservadas nos museus destes territórios, vários deles já danificados pela guerra ou saqueados a mando do Kremlin, como sucedeu com os valiosos artefactos citas que pertenciam ao Museu de História Local de Melitopol, na região de Zaporijjia, onde as forças russas detiveram a então directora, Leila Ibrahimova, e ameaçaram de morte uma funcionária para que esta revelasse onde estava armazenada a colecção de peças de ouro do império cita.

Um artigo de Sophia Kishkovsky publicado na Art Newspaper argumenta que o que se passou após a anexação da Crimeia, em 2014, permite antecipar que, também no que respeita a estas quatro regiões, o Kremlin irá defender que o património conservado nos respectivos museus deixou de ser propriedade da Ucrânia. Kishkovsky recorda que está ainda em curso um complexo processo jurídico internacional no qual o governo russo procura obrigar o museu holandês Allard Pierson, em Amesterdão, a devolver à Crimeia um conjunto de valiosos artefactos de ouro do império cita que lhe tinham sido emprestados pelo Ministério da Cultura ucraniano. Um tribunal holandês de primeira instância deliberou em 2021 que as peças deviam ser devolvidas à Ucrânia, mas o Kremlin recorreu e o processo aguarda ainda uma sentença definitiva.

O Museu Regional de História Local de Donetsk, para o qual foram transferidas obras de importantes museus de Mariupol destruídos pelos ataques russos, o Museu de Arte de Lugansk, que conserva uma das maiores colecções de estátuas funerárias polovetsianas, produzidas entre os séculos IX e XI e já comparadas às célebres estátuas da ilha da Páscoa, ou o Museu de História Local de Kherson, com um acervo de mais de 170 mil peças, são alguns dos museus das regiões anexadas cujos tesouros poderão vir em breve a enriquecer as colecções dos museus russos.

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