A hora delas

Fiquei encostada a uma árvore a ver se detectava possíveis bullies, a lembrar-me da minha infância que escorregou depressa demais, a observar aquele exército de alegria, nódoas e viroses, até a minha letargia ser violentamente quebrada pelo soar do sino, tal como acontecia nos meus tempos de escola.

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Talvez "lamentassem o inconveniente de interromper a sua educação à base de castelos na areia e Patrulha Pata para ingressar naquele antro ruidoso a cheirar a sopa" DR

Lá foram. Prontas para fazer do recreio o seu mundo e do mundo o seu recreio. Demoraram a largar-me as pernas, entre as quais espreitavam para todos aqueles pequenos seres, seres do seu exacto tamanho.

Talvez pensassem, como a criança que fui, que aquilo era uma espécie de paraíso, cheio de amigos, baloiços e brinquedos. Ou talvez pensassem no que pensei agora do alto da minha estatura de pessoa adulta (que nunca foi tão evidente): que todos aqueles micro indivíduos saltitantes eram diabinhos portadores de ranho, puxadores de cabelo, influências duvidosas. Talvez pensassem noutra coisa. Talvez tivessem medo, talvez tivessem curiosidade. Talvez sentissem o mesmo que Bernard Shaw quando disse: “Desde pequeno tive de interromper a minha educação para ir à escola” e lamentassem o inconveniente de interromper a sua educação à base de castelos na areia e Patrulha Pata para ingressar naquele antro ruidoso a cheirar a sopa.

Aos poucos largaram-me as pernas e deram-me a mão. Depois largaram-me a mão e do nada já estavam em cima do escorrega.

Talvez, afinal, me custe mais a mim. No fim das férias já ansiava pelo dia em que começariam as aulas para delegar os seus gritos a outros ouvidos e as suas travessias a outros colos. Mas, quando finalmente chegou, o alívio veio misturado com o vazio e com a culpa de lancheiras preparadas à pressa, onde o espaço livre de quem ainda não alia o sono à imaginação e à nutrição deita por terra o carinho com que se embrulham as sandwiches.

O meu coração ainda se estreia na arte de dividir com outros o tempo que era nosso. O nosso tempo dá lugar ao tempo delas. Lá ficaram em cima do escorrega, com outras crianças a fazerem fila atrás, a guincharem pelo parque, a locomoverem-se de forma descoordenada em pequenos tractores de plástico.

Fiquei encostada a uma árvore a ver se detectava possíveis bullies, a lembrar-me da minha infância que escorregou depressa demais, a observar aquele exército de alegria, nódoas e viroses, até a minha letargia ser violentamente quebrada pelo soar do sino, tal como acontecia nos meus tempos de escola.

Uma educadora veio avisar-me de que já tinha passado a hora dos pais.

Já passou a hora dos pais e já passou a minha hora, a minha hora de me empoleirar no escorrega, de apanhar bolotas, de ter quem me limpe o queixo e me encoste algodão com betadine no joelho. A minha hora já passou há muito e a delas é agora, está a passar, e quanto mais passa mais me arrependo de ter um dia desejado que passasse. Porque de repente, e sem que nada o fizesse prever, podemos dar por nós a destoar como adultos imóveis e melancólicos encostados a uma árvore num parque infantil.

Era claro, ao ver todas aquelas criaturas de chapéus coloridos e bibes, que eu não pertencia ali. Com o dramatismo autocentrado de pais de crianças pequenas virei costas e, sem olhar para trás, engoli em seco: “Elas agora estão com os dela.”

É a hora delas, o início dos seus percursos. Só posso desejar que sejam percursos muito felizes. Que lutem pelo que querem, que façam o que amem. (E, se possível, que amem Medicina, dava jeito uma médica na família.)

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