A litigância tributária em Portugal: problemas e constrangimentos
Os resultados da investigação recomendam leis processuais mais eficientes, âmbito das suas competências centradas nas questões jurídicas (...) mais complexas, eliminação de bagatelas, formação continuada, melhor alocação de recursos do Estado a montante dos tribunais.
(1) Em julho passado, seguindo as melhores práticas científicas, apresentámos os resultados preliminares de um projeto de investigação interdisciplinar – jurídico e empírico - cujo objeto é a litigância tributária em Portugal. Ouvidos especialistas e múltiplos agentes interessados, todos com contribuições importantes para melhorar e contextualizar o estudo, procedemos agora à disponibilização pública do trabalho final. Trata-se de uma investigação científica independente e pioneira em Portugal, a primeira conjugando este objeto e esta metodologia.
Parece-nos que a identificação dos problemas e constrangimentos do contencioso tributário em Portugal auxilia a elaboração de um diagnóstico rigoroso dos problemas. A partir do desenvolvimento desta pesquisa, será possível traçar as balizas de uma interface entre resultados obtidos e um estudo econométrico que servirá como suporte para propostas de melhoria de desempenho da justiça tributária em Portugal. Os primeiros resultados são apresentados nos quatro relatórios finais que convidamos o leitor a conhecer no site disponível do CIDEEFF, Faculdade de Direito de Lisboa.
(2) Um dos estudos parte da análise dos acórdãos publicados pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) em matéria tributária, na sua página da Internet (em acesso aberto), tendo sido escolhidos, para efeitos de amostra, os anos de 2018 e 2019. No seu conjunto foram levantados e analisados os dados de 1306 acórdãos. Obtivemos também o tempo total do processo, desde a primeira instância até ao STA. A identificação do número do processo em primeira instância foi possível em duas situações: através do texto integral ou do número de processo constante nos acórdãos do STA.
Quanto à duração total dos processos, existe uma certa volatilidade na duração total, entre 51 dias e 5679 dias. A média são 1770 dias e a mediana são 1496 dias. Por seu turno, quando consideramos a duração do processo no STA, existe uma certa volatilidade na duração dos processos no STA, entre 9 dias e 2476 dias, a média são 367 dias e a mediana são 266 dias. Estes dados indicam que os atrasos – os longos tempos processuais - residem fundamentalmente na primeira instância e não no STA. No confronto entre litígios relativos a questões de processo judicial (questões contenciosas), substantivas (de matéria ou de Direito) e de procedimento da autoridade tributária, os aspetos de contencioso ocupam uma percentagem exageradamente alta no STA: 51% do objeto de litígio, por comparação com as questões substantivas (41%) e de procedimento tributário (7%). De entre as questões contenciosas, predominam assuntos de custas judiciais, de nulidades de sentença, e de ausência de pressupostos do recurso.
Num contencioso tributário eficiente, os tribunais deveriam estar essencialmente ocupados com a interpretação de questões substantivas. A complexidade das leis tributárias substantivas – é o caso dos Códigos do IRC e do IVA – exige a elaboração de uma jurisprudência constante, clarificadora, especialmente por parte dos tribunais superiores, e em diálogo com outras instâncias congéneres, sejam tribunais de outros Estados Membros da OCDE, seja o Tribunal de Justiça da União Europeia. Os dados da amostra sinalizam também uma relevância excessiva de questões de inconstitucionalidade da norma e da questão da prescrição como objeto de litígios.
Os resultados da investigação recomendam leis processuais mais eficientes, âmbito das suas competências centradas nas questões jurídicas (materiais ou substantivas) mais complexas, eliminação de bagatelas, formação continuada, melhor alocação de recursos do Estado a montante dos tribunais.
No nosso estudo encontrámos, também, um conjunto de relatores no STA claramente abaixo da média da duração dos processos e um conjunto de relatores claramente acima da média da duração, números apurados depois de serem controlados pela tipologia e pelas características processuais. Esta discrepância recomendaria, por exemplo, uma avaliação interna de desempenhos individuais para explicar tal assimetria. Não nos compete especular sobre incentivos e contextos laborais, mas é recomendável considerar e ponderar um método de distribuição de processos que não se baseie excessivamente na celeridade individual dos juízes.
(3) Foi também escolhida e analisada uma amostra de decisões arbitrais proferidas e publicadas pelo Centro de Arbitragem Administrativa e Fiscal (CAAD) nos anos de 2016 a 2021, na respetiva página da internet. Dado o elevado número de decisões do CAAD para o período escolhido, selecionaram-se os processos com o campo “valor de pedido” igual ou superior a 500 mil euros para o IRC; e igual ou superior a 100 mil euros para os seguintes impostos: IRS; IMT; Imposto do Selo; IMI e IVA. No conjunto, foram analisados 1041 processos. Trata-se de uma amostra independente dos árbitros (vogais e presidentes) uma vez que não foi escolhida em função deles.
Do ponto de vista do contribuinte, importa ressaltar que a duração total do processo no CAAD versus a duração nos tribunais - desde a primeira instância até à decisão do STA -, dá uma imagem da lentidão dos tribunais tributários e de celeridade do CAAD. Tal exige uma reflexão dos poderes públicos sobre o papel dos tribunais tributários no futuro próximo.
Encontrámos na amostra selecionada uma relativa baixa probabilidade de a autoridade tributária (AT) ganhar no CAAD. Isso não significa, por si, uma tendência de decisões enviesadas favoráveis ao contribuinte, nem que o problema resida numa má defesa por parte dos representantes da Fazenda Pública. Dados os incentivos individuais dos contribuintes em todos os nós de decisão a montante, as percentagens observadas são consistentes com uma certa imparcialidade da arbitragem fiscal: como o recorrente é sempre o contribuinte e o recorrido é sempre a AT, é de esperar que o contribuinte tenha uma percentagem bem mais significativa de vitórias que a AT.
Sem embargo, essa baixa probabilidade para a AT significa, sim, uma ineficaz alocação de recursos por parte do Estado, sendo necessário entender se o problema reside a montante ou a jusante. Por exemplo, as entidades decisoras devem avaliar se os litígios podem ser decididos ao nível das reclamações ou recursos hierárquicos a favor do contribuinte, ou mesmo evitados; se o Fisco e o legislador estão atentos à jurisprudência do CAAD e dos tribunais e alteram comportamentos e legislação ambígua que dá origem a litígios; se o tipo de casos que são decididos em arbitragem (legislação nova, casos ainda não decididos por jurisprudência do STA, complexidade dos regimes analisados) são favoráveis a um bom ambiente económico; se o grau de aleatoriedade desejável na distribuição de casos por árbitros presidentes e por árbitros vogais convive com regras transparentes.
Por outro lado, também encontrámos que um número limitado de árbitros presidentes e árbitros vogais se repetem frequentemente na amostra enquanto a esmagadora maioria tem um número muito reduzido de observações (por exemplo, no caso dos árbitros vogais, a especialização em certos impostos parece uma variável determinante). Recomenda-se, pois, que os decisores públicos e os atores envolvidos ponderem modelos alternativos ao atualmente existente, quanto à seleção dos árbitros. Tendo em conta os resultados estatísticos da nossa amostra e seguindo as boas práticas da arbitragem tributária interestadual (ao abrigo de tratados bilaterais e de Diretivas Europeias), poderia optar-se por uma lista pequena de árbitros presidentes e árbitros vogais com um currículo destacado, resultante de acordo entre representantes dos contribuintes e do Fisco. A nomeação caso a caso também resultaria de acordo, sendo que cada uma das partes só poderia recusar, por exemplo, até três nomes.
(4) O nosso estudo não é o fim, mas o princípio de uma agenda de investigação independente. Os problemas da justiça administrativa e fiscal estão na praça pública. Não nos parece produtivo, e ainda menos sustentável, equacionar reformas sem um conhecimento apurado e detalhado do desempenho das diferentes instituições. É nessa perspectiva que colocamos agora o nosso trabalho à disposição dos especialistas, do público e das autoridades.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico