Crianças com deficiência não são anjos nem fardos
A visão angelical que se tem muitas vezes da criança com deficiência pode desumanizá-la, destituindo-a de experiências emocionais e físicas próprias do humano — como a raiva e o desejo sexual.
Desde que a minha família foi tocada pelo autismo, tenho vindo a identificar diferentes padrões narrativos sobre esta condição. Há uma linha que advoga que as crianças com deficiência são angelicais, seres de luz, quase dotados de uma certa sobrenaturalidade. Nessa perspectiva, só famílias especiais, escolhidas por Deus, teriam capacidade para acolher estas criaturas celestes, de quem se espera uma postura dócil e assexuada.
Existe uma outra linha ancorada em metáforas bélicas, que já foi bem estudada por autores como Susan Sontag. Os pais são vistos como guerreiros numa batalha contra a deficiência. O inimigo principal é a “doença”, que deve ser combatida sem tréguas, ainda que o autismo seja uma parte indissociável da criança que se pretende salvar na guerra. Aceitar o autismo é desistir da luta. Há uma variação desta linha com um jargão mais atlético: heróis que superam barreiras e nos inspiram ao enfrentar provas diárias com coragem e resiliência. Para vencer a maratona do autismo, é-lhes exigido força, foco e determinação. Superação é uma palavra-chave.
Identifico ainda as abordagens caritativa e fatídica, que muitas vezes se sobrepõem às anteriores. Nelas, a criança é uma pobrezinha, uma coitadinha que veio ao mundo dar cabo da felicidade doméstica. À família cabe agora carregar o pesado ónus da deficiência e estender a mão para obter ajuda, tanto do Estado como da sociedade. Há uma silenciosa nota de castigo divino quando nos dizem: “Deus nunca nos dá um fardo que não possamos carregar”.
Os discursos quotidianos sobre o autismo podem combinar elementos de linhas diferentes, como uma colcha de retalhos. Se enunciados por pessoas que não estão próximas da deficiência, estes fragmentos discursivos são muitas vezes frases feitas, slogans gravados de forma acrítica na memória, debitados para fazer as despesas da conversa e, simultaneamente, atenuar o desconforto de um diálogo sobre a deficiência em si. Diz-se uma ou outra fala de circunstância, encerra-se o tema e a vida pode seguir sem ser necessário voltar ao assunto.
Quando expressados por famílias atípicas, estes discursos podem constituir ferramentas que ajudam os cuidadores a encapsular o autismo numa história, atribuindo propósito ou nexo causal às suas vivências. Narrativas são explicações possíveis do mundo. Vejo estas retóricas como possivelmente úteis, reconfortantes, conciliadoras para muitas famílias. Muitos pais detêm o controlo da sua própria história valendo-se destas narrações. Repito: podem ser úteis. Respeito cada uma delas, mas não me identifico com nenhuma.
O autismo constitui uma deficiência. Isto significa que, numa lógica de equidade, apoios e serviços específicos devem ser oferecidos à criança e à família. A visão trágica do autismo deriva, em parte, das dificuldades reais que a maior parte das famílias enfrenta: discriminação, filas de espera, processos morosos na Segurança Social, ausência de recursos pedagógicos ou terapêuticos, funcionários pouco compreensivos, precariedade laboral, orçamentos limitados.
O desejo de não fazer parte de uma comunidade minoritária tem também raízes nesta colecção de obstáculos. Quem, em sã consciência, deseja ter de matar um leão por dia para conseguir um simples atestado multiusos, uma mera vaga, um apoio, uma luz verde? Ninguém.
De acordo com os Censos de 2011, há em Portugal 1.792.719 pessoas com pelo menos uma incapacidade (não encontrei estes dados actualizados nos resultados provisórios de 2021). Isto quer dizer que quase 20 por cento da população nacional declara-se com algum grau de deficiência.
Não é um fenómeno raro. Ainda assim, o padrão funcional dos restantes 80% determina em grande parte a lógica das dinâmicas sociopolíticas: como são desenhados os espaços, como o conhecimento é transmitido, como os corpos circulam no território ou quanto dinheiro será gasto em estruturas, apoios e programas de inclusão. O mundo não foi construído à medida de todos.
Conheço famílias em vários países que fizeram as pazes com a deficiência e, em particular, com o autismo. Que têm um interesse genuíno pelo funcionamento díspar do cérebro autista. Querem compreender a diferença. Vêem riqueza nessa troca. Olho para estes casos e pergunto-me o que está por trás dos seus corações tranquilos. A divergência que encontro é quase sempre esta: contam com uma rede de apoio forte, facultada quer pelo Estado quer pela comunidade. O que vai fazer a diferença, além da singularidade de cada criança, é o quão inclusivo é o contexto em que cada família está inserida.
Os serviços de saúde funcionam bem? Apoiam não só a criança mas também os cuidadores? As terapias são oferecidas gratuitamente e sem fila de espera? Há políticas públicas que garantem apoio concreto e desburocratizado? Os amigos estão disponíveis para ouvir sem julgamento? A comunidade é empática e acolhedora? Os vizinhos são compreensivos? Há uma rede de avós, padrinhos, tios, primos ou vizinhos disposta a ficar com a criança quando os pais estão exaustos?
A minha experiência diz que quanto mais respostas positivas obtivermos, mais leve e descomplexada será a relação da família com a deficiência.
O autismo é parte integrante da diversidade humana. Não é uma bênção, não é uma maldição. É uma condição que nos acompanha enquanto espécie geração após geração. Ver a criança com deficiência como um anjo pode desumanizá-la. Pois corrobora uma representação angelical que lhe retira experiências emocionais e físicas próprias do humano — como a raiva, a ingratidão, a pulsão destrutiva e o desejo sexual.
Incluir a criança com deficiência começa por não lhe negar o direito de ser isso mesmo: uma criança, com o vasto espectro de emoções e comportamentos, positivos ou negativos, presente em todos os seres humanos.