Por oposição ao conceito inventado pelos Gato Fedorento, poder-se-á dizer que certas castas portuguesas (ou portuguesas/espanholas) são tesourinhos cativantes. É o caso da Tinta Miúda (Graciano, na Rioja), que é mal-amada em Portugal. E tão mal-amada que, pelas nossas contas, só existem três produtores com monovarietais tintos: A Quinta do Pinto, A Herdade da Malhadinha Nova e o Monte Bluna. Num registo bem fora da caixa temos o alentejano colheita tardia da Torre de Palma, cuja origem é, por si só, suficiente para vender garrafas.
E a história conta-se assim. Em 2020, corria a vindima para o fim quando se soube que do sul de Espanha chegaria ao Alentejo uma tempestade com muita chuva, baptizada de Gota Fria. A Herdade da Torre de Palma fica em Monforte, perto da fronteira, e a casta Tinta Miúda tem a mania de amadurecer tarde, lá para meados de Outubro. Apesar de não estar ainda no ponto óptimo de colheita, o enólogo Duarte de Deus lembrou-se de cortar os cachos e deixá-los no chão, por cima da erva seca entre as linhas.
Qual era a ideia? Fazer um passito (vinho doce muito popular em Itália pelo facto de resultar da fermentação de uvas passadas). Deixou as uvas durante 15 dias no chão e, quando as colheu, observou que havia, nos bagos desidratados em contacto com as ervas, uns fungos da família da botrytis cinerea, que é o que dá origem aos famosos colheitas tardias, popularmente designados por Sauternes, por esta ser a grande região com Denominação de Origem Protegida para este perfil de vinhos (embora se façam colheitas tardias por todo o mundo).
Por regra, passitos e colheitas tardias são fermentados em barricas, mas Duarte teve a ideia de fazê-lo numa barrica originária de Sauternes (França), mas – e atenção a este mas – que tivesse viajado para a Escócia a fim de receber whisky durante 10 anos. Porquê? “Porque imaginei que uma barrica que tivesse levado Sauternes e whisky daria mais complexidade aromática ao vinho”, diz-nos o enólogo Duarte de Deus, que faz questão de acrescentar um detalhe. “Eu pedi a uma empresa que nos fizesse chegar uma barrica o mais próximo possível da data em que tinha sido esvaziada de whisky. Que chegasse, digamos assim, ainda a suar a whisky. De maneira que quando a barrica chegou deixámo-la a escorrer e ainda retiramos meio copo de whisky, que foi guardado. Quando o nosso colheita tardia acabou de fermentar, voltamos a juntar ao vinho o tal meio copo de whisky e, então, tudo ficou mais complexo do ponto de vista aromático”.
E a questão é esta. Nós provamos o vinho sem falar com o enólogo. E quando levamos o copo ao nariz e à boca ficamos com a sensação de que este colheita tardia era invulgar. É certo que tinha aromas de frutos vermelhos, notas vegetais, doçura nada enjoativa e aquele acético da praxe que fica sempre bem num vinho de sobremesa, mas havia aqui qualquer coisa de intrigante. Seria a casta em modo de colheita tardia? Não nos parecia porque ainda temos memória de um colheita tardia da Quinta da Alorna que usava a mesma casta. De maneira que foi só a partir de uma conversa a seguir à prova com o enólogo que se deslindou o mistério do colheita tardia feito numa barrica que nasceu em França, viajou para a Escócia e veio acabar os seus dias no Alentejo, que, já agora, custa 110 euros (não há bela sem senão).
No mais, Duarte de Deus, que é fã da Tinta Miúda (“está para os lotes de tinto como Arinto está para os brancos”) tem na adega de Torre de Palma um vinho base da casta destinado a espumante. Coisa que só vai sair daqui por seis anos porque, como se sabe, um espumante bom aprecia o vagar alentejano. Duarte não é aquele enólogo que aparece no radar dos enófilos, mas devia.
A Malhadinha Nova e algumas notas sobre a Tinta Miúda
Poder-se-á dizer que parte do sucesso comercial dos vinhos da Herdade da Malhadinha Nova – e sublinhamos que é parte - se deve ao arrojo dos seus rótulos. Ou seja, aos desenhos infantis, naïfs e cativantes dos filhos dos casais Rita e João Soares e Margaret e Paulo Soares, donos do projecto. Hoje, tudo isso parece banal, mas no início dos anos 2000 a coisa deu que falar.
Houve gente que comprou o vinho da herdade alentejana por causa das palmas das mãos do pequeno João embebidas em vinho e esparramadas no rótulo branco ou por causa da vaca com ares de Cornélia desenhada pela Matilde. Outras crianças vieram ao mundo e, de mãos e de vacas, passou-se para uma data de espécies do reino animal. Uma destas é o ouriço caixeiro, que serve para ilustrar o primeiro tinto varietal de Tinta Miúda.
Para não variar a narrativa, esta uva que outrora tinha expressão na região de Lisboa, Tejo, Alentejo e até no Douro (para lotes de vinho do Porto) acabou por entrar em declínio pelo facto de cair na categoria das castas aneiras, significando isto que é bastante irregular do ponto de vista produtivo. Num ano dá um vinho fantástico e nos dois ou três anos seguintes dá uvas que fazem os produtores arrancar os cabelos.
A casta até é resistente a um conjunto de intempéries, mas, como tem um ciclo muito longo (os cachos só estão maduros em Outubro), qualquer chuvinha do equinócio que começa a partir de 21 de Setembro pode transformar uvas sãs em uvas podres de um momento para o outro. E como o vinho é um negócio como outro qualquer, os produtores preferem castas mais certinhas.
Sucede que, como no caso da Trincadeira, da Vital, do Alfrocheiro ou até da Baga, quando o ano acorre de feição podemos ter vinhos de Tinta Miúda muito curiosos, que nos ajudam a desenjoar dos tintos da moda. Quando tudo corre bem na vinha, um Tinta Miúda é um vinho com notas de especiarias e de fumo/cinza, pendor marcadamente vegetal e acidez sempre presente. De resto, foi esta acidez que tornou a casta conhecida como acidificador natural. Quase todos os grandes Riojas – feitos à base de Tempranillo (Tinta Roriz ou Aragonês por cá) têm um toque de Graciano.
A acidez é um parâmetro natural determinante para a vida dos vinhos. Nas regiões quentes, equilibrar a acidez natural com o açúcar das uvas é um desafio complexo. Assim, a Tinta Miúda é uma casta estratégica para o equilíbrio dos lotes, razão pela qual alguns produtores a colocam nos seus vinhos de topo de gama, mas sem grande vontade de a mencionar nos contra rótulos porque não é uma casta sexy.
Se a Herdade da Malhadinha começou a produzir vinhos em 2003, só em 2019 os responsáveis da empresa decidiram lançar um varietal de Tinta Miúda. “Temos esta casta desde sempre, que entra nos nossos lotes de topo de gama, mas, em 2019 entendemos que ela revelava bem a sua identidade, razão pela qual a lançamos em varietal”, diz-nos Rita Soares, a responsável do projecto.
Neste Herdade da Malhadinha Tinta Miúda 2019 (20 euros) existe um compromisso entre os aromas vegetais da casta, frutos bem maduros e as notas da barrica - barrica que é sempre uma característica dos vinhos da casa. Na boca, os abaunilhados da madeira misturam-se com as sensações vegetais, pelo que o vinho permanece muito tempo.
Quinta do Pinto e Monte Bluna
Num salto para a região de Lisboa encontramos dois tintos bem distintos: O Quinta do Pinto 2016, de Alenquer, e o Monte Bluna 2019, de Arruda dos Vinhos.
Quando, em 2003, António Cardoso Pinto comprou a propriedade, já havia uma vinha de Tinta Miúda com 47 anos. Naquela altura, e à semelhança do que aconteceu noutras quintas da região, o mais recomendável era o arranque da vinha para se meter Touriga Nacional, Syrah e outras. Mas Rita Pinto achou que não e que era melhor experimentar primeiro o vinho como monovarietal. Não se arrependeu, de maneira que a vinha lá está a fazer o seu caminho. Como varietais temos as colheitas de 2003, 2004, 2013, 2016, 2017.
No mercado está já o vinho de 2017 mas provamos o de 2016 (18,90 euros), que se destaca por uma tal finesse que, fosse ele provado às cegas, levar-nos-ia para os lados de um Castelão de grande nível. Aromas de Frutos vermelhos, de fumo, de especiarias e bosque dão-lhe um carácter senhorial. E para se confirmar que esta é uma casta que evolui muito bem tivemos a sorte de provar por estes dias o tinto de 2004, que está, com as notas de especiarias e mentoladas, em grande forma, pelo que nunca deve haver pressa para se abrir garrafas destes vinhos.
Já o Monte Bluna 2019 (22,90 euros) é um caso curioso, por resultar de uma pequena vinha (0,4 hectares), plantada recentemente e que está a uma altitude de 400 metros. Como este é um terroir bem diferente (mais fresco), o vinho explora claramente a componente vegetal e rústica da casta, de tal forma que, na boca, é bastante adstringente. Só o tempo de garrafa domará este vinho de um novo produtor que, querendo apostar nas castas regionais e nacionais, está neste momento e estudar ao detalhe os diferentes solos da propriedade. Saúda-se o rigor.