O caso Figo, a mudança de Barcelona para Madrid: “A principal razão foi valorizarem-me”
Documentário lançado nesta quinta-feira reflecte sobre a transferência que mudou o futebol espanhol, no início do século. De Veiga a Florentino, de Futre a Guardiola, são vários os testemunhos.
Ao contrário do que acontecia com Luís Figo de cada vez que pisava o relvado, não houve grande inspiração no título do documentário que foi nesta quinta-feira lançado pela Netflix, mas O caso Figo ajuda a entender melhor os bastidores de uma das transferências mais mediáticas e polémicas do futebol moderno. Do Barcelona para o Real Madrid. De um rival (e de um paradigma) para outro. Uma mudança milionária à qual os catalães desde sempre colaram o rótulo de traição e que ainda hoje têm dificuldade em digerir.
É difícil traduzir em palavras o grau de hostilidade que rodeou o primeiro clássico em Camp Nou depois da saída de Luís Figo, no ano 2000. Mas há uma imagem, quase anacrónica, que é suficientemente esclarecedora: uma garrafa de whisky, intacta, no meio do relvado. Entre papéis, copos, bandeiras e tudo o que os adeptos do Barcelona inconformados com a perda de um ídolo tinham à mão de semear nas bancadas. E eram muitos, milhares os que transformaram o assunto numa questão pessoal.
Luís Figo não era apenas um jogador de um “Barça” que vivia um período de ouro. Era um craque que fazia a diferença, que rebocava a equipa (e havia talento a rodos no plantel), tal como rebocava, à data, a selecção portuguesa. Tinha saído do Sporting como um jovem promissor, em 1995, para se tornar numa referência maior de um emblema que representava toda uma região, envolto num ideário de autonomia e combate ao centralismo. Era, no fundo, também ele, o rosto de uma causa.
Como é que lá chegara? Pela qualidade indesmentível. “Era o número um do mundo”, reflecte Roberto Carlos, lateral brasileiro que recebeu Figo em Madrid. “Quando as coisas corriam mal, ele aparecia”, atesta Pep Guardiola, hoje um treinador de eleição, ontem um antigo companheiro de quarto e amigo chegado do criativo português, em Barcelona.
"Começa com uma mentira"
Luís Figo tinha construído uma reputação na Catalunha e a afición venerava-o, mas o calor que sentia das bancadas não tinha, como explica no documentário, tradução nos gabinetes da direcção. “Quando tens o sentimento de que não reconhecem o que dás, interrogas-te se noutro lado te reconheceriam”. E essa percepção agravou-se com a entrada em cena de Florentino Pérez, na rampa de lançamento da sua afirmação como presidente do Real Madrid.
Os “merengues” tinham conquistado duas Ligas dos Campeões em três anos quando o empresário do ramo imobiliário decidiu entrar na corrida. Determinado a “ganhar com maiúsculas”, um lema que utilizou durante meses, Florentino era visto como um outsider na corrida à presidência, mas acabou por puxar de um trunfo que virou as contas e as previsões do avesso.
Determinado a montar uma equipa de estrelas, com os melhores intérpretes do mundo, o ainda líder do Real Madrid apontou baterias ao “melhor jogador a actuar em Espanha” e estava disposto a tudo para o conseguir. A cláusula de rescisão de 60 milhões de euros não era um entrave, e muito menos as comissões chorudas que começaram por ser atiradas para cima da mesa, quando Paulo Futre, compatriota de Figo e conhecido de José Veiga (empresário do número 7 do Barcelona), se reuniu com Florentino para discutir o tema.
Futre começa por explicar a resistência de Veiga em sequer abordar a hipótese de uma transferência, para depois garantir que convenceu o agente exorbitando os valores da intermediação. “Começa com uma mentira”. Uma mentira que falava em seis milhões de euros de comissão - concluído o negócio, haveriam de ser 4,5 milhões (1,5 para Futre e três para Veiga).
O “pré-contrato” assinado por Veiga
O que começou por ser impensável, aos poucos, foi ganhando contornos de uma excentricidade possível. Figo não quereria sair, mas mandatou o empresário para ir mantendo conversações com o Real Madrid na óptica de melhorar o contrato que tinha com o Barcelona. O plano, porém, saiu furado, porque Joan Gaspart, presidente do Barça, se mostrou inflexível desde o primeiro minuto.
Uma posição entendível, de resto, à luz da recente renovação de contrato com o internacional português, que ainda tinha mais três anos de vínculo para cumprir com os “blaugrana”. Uma posição que, ao mesmo tempo, semeou dúvidas onde antes havia certezas, rasgou fronteiras onde antes existia um muro de convicções. E o caldo entornou-se quando a imprensa começou a noticiar a existência de um pré-contrato entre o jogador e o Real.
“Não sei se houve um contrato assinado, porque nunca o vi”, garante Figo, no documentário. Palavra a José Veiga: “Luís Figo nunca viu esse contrato. Eu, antes de assinar, liguei para o Luís e li o texto todo que lá estava e perguntei-lhe: ‘Luís, posso assinar?’ E o Luís diz: ‘Podes assinar’. Era impossível assinar qualquer contrato sem a autorização do jogador, impossível”.
Enquanto manobra negocial para forçar uma renovação na Catalunha, a estratégia estava a falhar. Do outro lado, porém, crescia a confiança num negócio que elevaria o estatuto de Florentino e do Real Madrid. E nem quando Figo, de férias na Sardenha, deu uma entrevista ao jornal catalão Sport, a assegurar, a pés juntos, que ficaria em Barcelona (“Não irei para o Real Madrid, continuarei no Barcelona. É uma decisão irrevogável”), o então ainda candidato a presidente vacilou.
Resistência, hesitação, mudança
Mas porque é que Figo fez uma declaração tão contundente, que viria a provar-se falsa? “Nessa altura, pensei convictamente que era isso que ia acontecer e foi por isso que o disse”. Neste ponto da história, a viagem de Futre e Veiga até ao hotel onde o jogador estava hospedado, de férias, com a família, provou-se decisiva. Depois de muita insistência, convenceram-no a rumar a Lisboa para uma reunião com Florentino e a maré mudou.
“O José [Veiga] sabia o compromisso que tinha assumido e os problemas que podia enfrentar e estavam lá [no hotel] para me convencer a assumir a responsabilidade”, acrescenta Figo, que até à última hora resistiu à ideia de uma mudança tão brusca. Por um lado estava convencido, por outro hesitava. E a expressão no rosto no momento da apresentação oficial em Madrid, com a camisola 10 nas mãos, provava-o.
Joan Gaspart, que assumira entretanto os destinos do Barcelona, nunca foi capaz de aceitar a separação. O dirigente conta, inclusive, o teor do telefonema que terá recebido de Figo depois da eleição na Catalunha: “Tenho dois bilhetes, um de Lisboa para Barcelona e outro de Lisboa para Madrid. Tens de me dar um aval bancário de 500 milhões de pesetas e vens buscar-me ao aeroporto para anunciar que eu fico no Barça”.
Não ficou. “A principal razão foi que me valorizaram e queriam-me de verdade”, insiste Luís Figo. “Fui egoísta? Talvez. Se fui ganhar mais dinheiro? Sim, mas acho que se tivesse ficado em Barcelona acabaria por ganhar o mesmo”. Essa versão, a mercantilista, ainda perdura entre muitos adeptos “culés”. “Traidor”, “judas”, “pesetero” foram apenas alguns dos insultos que sentiu na pele ao longo dos meses (anos) seguintes.
Na Catalunha, houve quem fizesse um esforço por compreender a decisão (“Perdemos um jogador irrepetível, com muito talento. Desejo-lhe o melhor”, reagiu Guardiola), e quem nunca a aceitasse, fosse qual fosse a explicação. “Que assuma que saiu porque quis. Porque quer ganhar mais e mais e mais. E é legítimo, mas eu não me vou esquecer disto”, desabafa Gaspart, que diz ter-se sentido “como um touro morto na arena” quando a transferência se confirmou.
Quanto a Figo, prosseguiu a caminhada desportiva até ao topo, sob as vaias catalãs e os aplausos madridistas. Sagrar-se-ia novamente campeão de Espanha, conquistaria a Liga dos Campeões, arrecadaria uma Bola de Ouro. E fê-lo sem que, provavelmente, tivesse a noção de que estava a promover uma mudança profunda, não só na política de transferências, mas no equilíbrio de forças do futebol espanhol.