“Felizmente./ Somos todos diferentes. Temos todos/ o nosso espaço próprio de coisinhas próprias, como narizes e manias,/ bocas, sonhos, olhos que vêem céus/ em daltonismos próprios. Felizmente.” Versos de Ana Luísa Amaral, poeta recentemente falecida, que consta na sua Ode à Diferença (ou não-ode, como a caracterizou nas últimas palavras do poema).
A pretexto da sua morte, tem sido várias vezes evocada e difundida uma passagem da sua entrevista ao Expresso, em 2019, em que afirma que a poesia, em si mesma, não tem qualquer “aplicação prática”, residindo o seu valor na casa do simbólico, aquilo que nos permite encontrar, comunicar e desenvolver a nossa humanidade. Permitam-me esboçar algumas considerações acerca desta visão das valências do poético: já que este é um texto de argumentação acerca do seu poder.
A poesia, como eu a entendo, é uma forma de conhecimento. Antes de mais, de autodefinição – é um momento de colocação de todas as cartas dos sentimentos em jogo. Os grandes poetas sentirão, certamente, um primordial medo lancinante ao colocarem a primeira palavra – por vezes, de rompante, o primeiro verso – na brancura da folha do caderno. Depois, possivelmente, sentirão algum alívio, perguntando-se sobre a dimensão do ónus que deles libertaram. Porém, o voo é breve, o “canto de ave”, como diria Pessoa, é apropriado pela complexidade de um mundo repleto de incertezas, uma realidade sem limitações excepto as que cada pessoa em si identifica.
Aqui, surge geralmente uma oportunidade ao poeta para criar simultâneas reconciliações e apaixonantes discussões líricas acerca do emocional presente e preponderante. Afinal, quantos de nós, jovens ou mais maduros escritores de estrofes, não começámos pela fase intimista da choradeira e da revolta com a sociedade? E quantos transformaram essa primeira abordagem numa coisa multiforme, capaz de tornar a insubmissão em estética e o pranto num doce conjunto de ritmos, cores, introspecções e lições?
Mas se circum-navegamos o nosso espírito e as nossas ideias com a poesia, é através dela que também conhecemos os outros. As suas verdades e mentiras, e as mentiras disfarçadas de verdades e as verdades negligenciadas passando por mentiras. Conhecemos as suas narrativas ontológicas, como quem diz, as suas histórias, como concebem as suas vidas, o que esperam do humano e da natureza. A arte poética, como toda a arte, fornece-nos pistas para, se assim quisermos, desvendarmos, colectivamente, os segredos que por entre nós caminham e aos quais por diversas vezes não damos a devida atenção. Falo das questões da pobreza e da exclusão social, das lideranças, das potencialidades dos projectos educativos, das efemeridades e das permanências tecnológicas, das diversidades culturais, da amizade e do amor – todas as esferas em que apenas somos gente se todos formos gente.
Porque o conhecimento exige tempo para a sua maturação e elevação ao estatuto de explicação dos fenómenos do universo, este não se coaduna com rapidezes artificiais. Ora, nem a poesia. Ela contempla o finito munindo-se do infinito, perscruta o óbvio, vai para além das fachadas tal como a ciência. Por isso fica invalidada se se vir rodeada das ofensivas e contra-ofensivas que actualmente têm emergido e se consolidado como modos violentos ou postiços de interpretar as pessoas e os seus discursos, tais como o politicamente correcto e a cultura de cancelamento.
Nenhuma poesia real é xenófoba, racista, LGBTQ+fóbica, misógina, idadista ou concentra qualquer atributo que, como último recurso, pretende excluir alguém da sua leitura, da sua audição ou da sua escrita. O poético deve estar totalmente acessível, desde que nasce e até se tornar obra e ofício. Tal não significa que adira a percursos fáceis de catalogação e de apagamento em prol de uma missão de purificação das almas. A poesia que intervém não é necessariamente intervencionista, dado que ela procura chamar a atenção para os problemas efectivos e não construir um arquétipo de como deve ser o mundo. O poeta necessita de saber que, escrevendo, está sempre a ser incompleto – e é aí que adivinha os lápis próprios para uma redacção proactiva e contínua dos seus destinos.
Nos tempos que correm fazem falta composições que cheguem, mente adentro, aos confins das nossas maiores irracionalidades, convocando-nos para um olhar e uma acção de justiça para com todos os povos. E que o faça com uma linguagem material, isto é, de lhaneza e que reconheça que a melhor forma de ser eficaz é fazer-se compreender. Por outras palavras, carecemos de uma boa poesia, uma poesia (re)qualificada, (re)aproveitada na sua problematização das desigualdades exteriores ou nas suas possíveis tomadas de posição sobre a importância do romantismo ávido de experiências e de descobertas interiores.