Alexandre Nero, a cantar a partir do Brasil “um mundo que não existe mais”
No seu quarto disco, o cantor e actor brasileiro Alexandre Nero quis mostrar o silêncio e a contemplação de um mundo que já não existe. Nome: Quartos, Suítes, Alguns Cômodos e Outros Nem Tanto. Planeia apresentá-lo, logo que possa, em Portugal.
Muitos hão-de conhecê-lo das telenovelas, mas Alexandre Nero não começou aí, começou na música. Que, aliás, nunca abandonou. Prova disso é que lançou este ano um novo álbum, intitulado Quartos, Suítes, Alguns Cômodos e Outros Nem Tanto. Um título longo, como o dos que o antecederam: Vendo Amor em Suas Mais Variadas Formas, Tamanho e Posições e o DVD ReVendo Amor: Com Pouco Uso, Quase na Caixa, ambos de 2012. Muito antes, estreara-se a solo com Camaleão (1995), a que se seguiu em 2001 Maquinaíma, álbum homónimo de um grupo que liderou nesse período (integrou ainda outro, o Denorex 80). Gravado durante a pandemia, mas iniciado antes desta, o novo disco tem participações de Milton Nascimento, Elza Soares (1930-2022) e da St. Petersburg Studio Orchestra.
Nascido em Curitiba, no Estado do Paraná, em 13 de Fevereiro de 1970, Alexandre Nero recorda ao PÚBLICO esses seus primeiros passos na música e como daí passou ao teatro e à televisão: “Comecei sozinho, gravei um disco a solo, ainda inexperiente, e passei por vários grupos. A música entrou na minha vida como sobrevivência, sobrevivi da música aqui no Brasil durante 25 anos. Sou duma cidade do sul do país, Curitiba, onde fui bastante conhecido no universo da música, e lá eu visitava o universo do teatro como curiosidade. Passeava pelo teatro como um aprendiz, porque gostava muito dessas interferências técnicas nos meus shows. Queria entender de luz, de figurino, de espaço cénico, até porque sou um apaixonado pelo cinema desde criança. Então, fui entrando nesse universo profissional e a partir daí os convites foram aparecendo, primeiro do teatro e depois da televisão.”
O título do novo disco de Alexandre Nero, Quartos, Suítes, Alguns Cômodos e Outros Nem Tanto, parece remeter para o confinamento ditado pela pandemia, mas na verdade vem de trás. “O disco começou a ser criado antes da pandemia, mas curiosamente, por ironias da vida, foi também num processo de reclusão. Começou a ser gerado quando num processo em que eu estava fazendo Sertão da Paraíba, num projecto da Rede Globo, onde nós ficámos seis meses gravando Lajedo de Pai Mateus [Cabaceiras], um lugar absolutamente inóspito onde a civilização é muito rara. A cidade mais próxima fica a 40 quilómetros de distância. Aquilo mexeu muito com a gente, emocionalmente.” E foi ali que Alexandre Nero decidiu começar a gravar um álbum, desenhando já algumas canções. O processo demorou mais um ano até fixar repertório e arranjos. “E quando íamos começar a gravar, fechou o Brasil.”
Do confinamento voluntário, passaram ao confinamento obrigatório. E passaram-se mais dois anos. “Durante meses, a gente ficou sem se encontrar, eram encontros remotos, apenas pela internet e aí o disco começou a caminhar para outro lugar que não era o original.” A orquestra da cidade russa de São Petersburgo acabou por entrar no disco por conta dessa distância. “Éramos para gravar apenas um quarteto ou quinteto de cordas, mas como com o confinamento no Brasil a gente não tinha possibilidade de gravar nada, optámos pela Rússia, por essa escola de música erudita. Eles gravaram todas as sessões das minhas músicas numa só manhã, é incrível! São trabalhadores de alto quilate da música erudita, essas orquestras.”
Originalmente, a base do disco seriam violões e piano, mas a possibilidade de enviar os arranjos e as pautas pela internet mudou tudo. “Tudo foi gravado no meu quarto. É o meu quarto disco, mas também foi gravado no meu quarto. Sem poder trazer músicos para o meu quarto, o Antônio Saraiva, que é o produtor, sugeriu que eu enviasse as músicas para São Petersburgo, porque não custaria assim tão caro.” Com a ajuda de um produtor da Rede Globo, estabeleceu o contacto e os resultados excederam as suas expectativas. “Foi incrível, o resultado é maravilhoso e hoje eu nem consigo imaginar o disco sem a orquestra.”
As participações de Milton Nascimento e Elza Soares são outra das mais-valias do disco, o primeiro cantando em Guerra de cegos e a segunda em Miseráveis, duas canções compostas em parceria por Alexandre Nero e Fábio Freire. “Guerra de cegos tem uma influência muito grande do Clube da Esquina, do Milton Nascimento, e eu via muito o Milton cantando essa música.” Convidaram-no, com a intenção de ele participar sem parecer que estavam a usá-lo como trunfo. “Quando ele aceitou, pensámos numa maneira de ele aparecer quando ninguém esperasse, como o Marlon Brando em Apocalypse Now. É quase no fim da música, quando aquela voz de Deus aparece.” Quanto a Elza Soares, foi pela sua história e pela sua vida que Alexandre e o produtor do disco pensaram em incluí-la numa música política. “Aí, a gente optou por Miseráveis, porque não é uma música tradicional, é quase experimental, parece a colagem de duas músicas, com arranjos mais complexos e uma pegada mais rock’n’roll, vertente que ela desenvolvia naquele momento. Ficámos muito felizes com o resultado.”
O disco abre e fecha com dois temas longos: Virulência, com letra de um dos grandes compositores brasileiros, Aldir Blanc (que morreu em 2020, vítima de covid-19), e Sem mais, do próprio Alexandre Nero. Ele explica: “A única certeza que a gente tinha, quando começou, era que Sem mais seria a última música.” Mesmo antes de saberem a ordem dos temas ou com ia começar o disco. “Já Virulência [também com quase seis minutos] foi a última música a ser composta. Só que, depois de tanto ouvir, eu achei que ela definia praticamente todo o disco: tem a força, a delicadeza, a política, tudo o que o disco propõe.” Os quase seis minutos de duração podiam ser um impedimento, mas Alexandre lembrou-se da abertura do 2001 de Kubrick. “Se alguém não passar por aqueles 20 minutos imensos sem fala, é melhor não seguir o filme. Porque o filme é isso. E o disco também é isso!”
O disco foi pensado com silêncios, muitas pausas, respirações. “Porque era uma intenção minha, como artista, fazer essa provocação, esse silêncio de um mundo que não existe mais, não só externa como interna, esse frenesi… Tudo é alegria, tudo é pra cima. E eu quis mostrar essa pausa, o disco tem essa contemplação. Mas no show, ao vivo, é preciso um pouco mais de sangue, de veia, de virulência, e aí a gente puxa mais.” A estreia foi em São Paulo, mas Alexandre teve de interromper as apresentações para gravar nova telenovela. “Estive inclusive em Lisboa, duas semanas, gravando. Mas depois eu quero voltar para fazer o show na Europa. Começar no Brasil e ir para aí, Portugal especialmente.”