O escutismo ainda não é seguro para pessoas LGBTQ+ (mas para lá caminha)

Iniciativas como a criação de uma Equipa Nacional de Inclusão e do projecto Entre Linhas mostram vontade por parte do Corpo Nacional de Escutas em integrar pessoas LGBTQ+ no movimento. No entanto, cada agrupamento continua a ter uma realidade própria e, muitas vezes, homofóbica.

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André Paupério é genderfluid e tem 22 anos Nelson Garrido
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Gonçalo Vieira deixou o escutismo aos 22 anos Nelson Garrido

Inês (nome fictício) tem 24 anos e é escuteira há 12. Metade da vida. Foi exploradora, pioneira e caminheira. Devia estar em formação para ser chefe, mas não está certa de que o vai fazer. Avisaram-na, no seu agrupamento, no distrito de Leiria, que para ser chefe tem de esconder que é lésbica. Se não o fizer, pode ser impedida de voltar a utilizar o lenço e a farda.

“O que me disseram é que provavelmente seria expulsa do movimento”, conta. A jovem e a namorada pertencem ao mesmo agrupamento e a relação entre as duas não é segredo. Para os dirigentes, contudo, deve ser o mais invisível possível. “Chegaram a dizer-nos para não chegarmos juntas aos escuteiros, porque dava má imagem. Sempre que estávamos em equipas, separavam-nos, nunca podíamos ficar juntas, era tudo à volta disso”, explica a jovem.

Por serem lésbicas, viram a possibilidade de permanecerem nos escuteiros discutida numa reunião de dirigentes. A jovem conta que, no seu agrupamento, há um dirigente que está a ser alvo de investigação por alegados abusos de menores. No entanto, a sua permanência nos escuteiros nunca foi alvo de discussão, tendo o homem abandonado o movimento por iniciativa própria: “Nunca foi um problema, nunca foi qualquer questão. Comigo é um pouco diferente porque parece que é um assunto mais grave.”

A realidade que Inês viveu na pele não vai ao encontro da posição do Corpo Nacional de Escutas (CNE), de acordo com Paulo Pinto, o chefe nacional adjunto da associação. Questionado sobre se a orientação sexual e a identidade de género constituem critérios de expulsão, responde: “Qualquer criança ou jovem que esteja em processo educativo não é expulso por essa questão.” Acrescenta: “Os escuteiros aceitam qualquer pessoa, qualquer criança ou jovem, tenha ela a orientação sexual que tiver. Não é qualquer critério de entrada neste movimento. Nós oferecemos um escutismo que tem uma matriz católica e, dentro desta matriz, qualquer jovem ou criança pode entrar para a nossa associação”, afirma.

O CNE foi fundado em 1923 e é descrito, no site oficial, como “um movimento de educação não formal de jovens, sem fins lucrativos, não-político e não governamental”. É um movimento da Igreja Católica que “assume, com orgulho, a sua responsabilidade cristã na sociedade”. A ligação estreita à Igreja acaba por influenciar alguns posicionamentos em relação a certas temáticas. A identidade sexual e de género é um deles.

De agrupamento em agrupamento, as realidades assumem contornos distintos. Ainda que estejam sob as regras do CNE, a verdade é que a experiência das pessoas LGBTQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero, queer e outras identidades) no escutismo varia de sede para sede.

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Gonçalo estava nos escuteiros desde os cinco anos Nelson Garrido

Gonçalo Vieira tem 23 anos, é queer e já abandonou o escutismo. Por volta dos 22 anos, os escuteiros deparam-se com uma decisão: ou prosseguem o caminho para se tornarem dirigentes que contempla uma formação paga com a duração de cerca de dois anos ou deixam o movimento. O jovem portuense optou pela segunda opção por achar que era “a que se adequava.” Nos escuteiros desde os cinco anos, fala de uma experiência positiva, apesar de ter recebido, em várias instâncias, comentários pela forma como se apresentava.

“Nunca sofri muito preconceito por ser queer, por ser uma pessoa não-normativa. Mas há muitas coisas, especificamente em relação à apresentação, que chocavam muito comigo. Era-me várias vezes dito que eu não podia usar brincos, que não podia usar isto e aquilo”, conta. Todavia, nunca viu a sua voz reprimida. “Se alguém me chamasse à atenção, eu respondia: ‘Mas a Raquel está a usar. Eu tiro se a Raquel não puder usar também. Não acho justo, não estou a ofender ninguém. Até fazerem alguma coisa unitária para toda a gente, eu não concordo.’ E sempre me foi permitido manter a minha opinião.”

Por prezar o trabalho que desenvolvia e as actividades em que participava, Gonçalo chegou a pôr a sua identidade de lado para não causar atritos com dirigentes: “Havia muitas vezes em que eu pensava ‘Para quê? Não vai valer a pena. Vou só bater com a cabeça na cabeça deste gajo, não vai levar a lado nenhum'”. Quando queria expressar as suas preocupações, dar opiniões ou “bater o pé”, fazia-o no Cenáculo.

O Cenáculo consiste num fórum de caminheiros e companheiros – escuteiros dos 18 aos 22 anos – onde se criam espaços “de debate de temas de interesse para jovens adultos”. Ocorre tanto a nível local como a nível nacional, contando com a participação de representantes de cada região, eleitos localmente.

Neste tipo de actividades onde há vários agrupamentos representados, dá-se o cruzamento dos contextos de cada um. Para os escuteiros da comunidade LGBTQ+, estes encontros levam, por vezes, a episódios de discriminação. E foi precisamente num Encontro Nacional de Guias que André Paupério, caminheiro genderfluid de 22 anos, optou por utilizar uma saia com o uniforme.

É frequente, em algumas actividades, os escuteiros serem divididos por sexo: masculino e feminino. Enquanto as pessoas do sexo feminino podem optar por utilizar calções ou saia, os elementos do sexo masculino só podem vestir calções. Inconformado com este cenário e apoiado por um dirigente do seu agrupamento, André optou por se apresentar de saia, mesmo que tal gesto não fosse regulamentar.

“Foi nessa altura que comecei a perceber que, embora na minha realidade local aquilo que eu achava normal em termos de expressão podia ser aceite, não era assim em todo o lado. Nessa actividade sofri discriminação, fizeram comentários bastante desagradáveis. Houve um dirigente que se virou para mim – uma jovem de 16, 17 anos – e disse que o que eu estava a fazer era uma atitude vergonhosa, que envergonhava todo o movimento escutista. Só por não estar a cumprir o regulamento e tomar a atitude de usar uma saia”, conta.

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André apresentou-se de saia no Encontro Nacional de Guias e sentiu-se discriminado Nelson Garrido

No final da actividade mencionada, André revela que o dirigente que o tinha acompanhado chamou a atenção dos escuteiros presentes de que a discriminação não era uma solução. “Senti sempre muito apoio por parte dos meus colegas e dos meus dirigentes”, revela.

O episódio motivou André, em conjunto com uma colega, a criar, em 2018, uma página chamada Escutismo para Todos com o objectivo de perceber se a discriminação de pessoas LGBTQ+ no seio do movimento era comum no país. Para tal, criaram um formulário e distribuíram-no por vários agrupamentos nacionais. “Não era nenhum estudo científico, mas queríamos ter uma noção de como é que as pessoas da comunidade se sentiam”, esclarece.

Receberam 1500 respostas num curto período de tempo. Destas, sobraram 1473, depois de se excluírem as respostas de escuteiros dos seis aos 14 anos. Segundo o site do CNE, há cerca de 72 mil escuteiros em Portugal. Excluindo os lobitos e os exploradores/moços cujas respostas não foram contabilizadas sobram 36.688. Assim, os dados obtidos representam a posição de cerca de 4% da população escutista.

Ainda que sem validação científica, o inquérito permite ter uma noção da posição dos elementos escutistas em relação a questões LGBTQ+: 92,8% dos inquiridos acham que indivíduos da comunidade LGBTQ+ deveriam ter os mesmos direitos sociais que as pessoas heterossexuais e 91% consideram que a comunidade merece um lugar no escutismo. No entanto, 51,7% pensam que o CNE não está preparado para receber pessoas LGBT e 58,8% culpam o facto de estar ligado à Igreja Católica como uma limitação à integração.

Na mesma linha, ainda que 88,5% considerem que a Igreja Católica deveria aceitar pessoas LGBT, 51,7% consideram que tal não acontece. A maioria (78,8%) refere nunca ter assistido a discriminação por parte de escuteiros ou agrupamentos em relação a pessoas LGBT, mas na questão “Achas que o CNE aceita pessoas LGBT?” as opiniões dividem-se: 39% dizem que sim, 38,3% dizem que não.

A resposta do CNE

Com a criação da Equipa Nacional de Inclusão pelo CNE, André decidiu pôr de parte a página Escutismo para Todos e dedicar-se a este novo projecto. Uma circular do CNE de Dezembro de 2021 explica que a equipa tem o objectivo de “discutir e trabalhar no âmbito da inclusão no movimento, e na inclusão na comunidade, de diversos grupos minoritários”. Dos temas a ser abordados, destacam-se a igualdade de género, a inclusão de pessoas com necessidades específicas, a inclusão cultural e religiosa e inclusão social e económica. Paralelamente, o CNE criou o projecto Entre Linhas, com a intenção de abrir espaço para o debate e reflexão de temas como a sexualidade, a afectividade, a comunidade LGBTQ+, a igualdade de género, entre outros. ​

Para o dirigente Juan Ambrósio, um dos criadores do Entre Linhas, o projecto é importante por lidar com um tema que sempre foi importante: “A construção da identidade, onde se inclui também a construção da identidade sexual, é um tema maior dos nossos dias, se é que não o foi sempre. Mas nem sempre foi falado.” Esperam assim tirar o debate sobre a identidade sexual das entrelinhas e trazê-lo para o centro da reflexão e da formação. Primeiro, começaram por auscultar profissionais de várias áreas – da Biologia à Teologia – sobre questões de construção de identidade de género e orientação sexual. Já fizeram reuniões com jovens para partilhar informação e agora segue-se a formação de dirigentes escutistas nestas questões, para dar apoio e prevenir a marginalização.

Qual o peso da Igreja Católica?

A vertente católica do escutismo é frequentemente apontada como uma razão para existir, em alguns agrupamentos, um posicionamento negativo em relação a identidades não-heteronormativas. Curiosamente, foi pela mão de um representante da Igreja Católica que nasceu o Entre Linhas. Ao 7 Margens, Luís Marinho, padre e assistente nacional dos escuteiros católicos, explica por que razão criou o projecto: “Identificámos um risco de a fé se tornar irrelevante nas vidas dos jovens, na dimensão afectiva. Por isso começámos a perguntar como é que a fé cristã é capaz de iluminar essas realidades.”

Todavia, os escuteiros LGBTQ+ ainda vêem na Igreja Católica uma barreira à inclusão de pessoas da comunidade. “Para conseguir valorizar mais o escutismo”, Gonçalo, por exemplo, começou a dividir o movimento em facções. De um lado estão as actividades do escutismo e a teoria; do outro, “aquilo que a Igreja Católica espera que a gente faça”. Para o ex-escuteiro, nunca vai existir uma integração plena da comunidade LGBTQ+ no universo escutista. E a razão é a Igreja: “A partir do momento em que o movimento está relacionado com uma instituição como a Igreja Católica que se diz progressista, mas é altamente homofóbica, não acho que exista uma progressão possível.”

Inês ainda está a perceber se gosta do movimento pelo agrupamento onde está inserida, ou pelo movimento em si. A jovem reconhece que num grupo não-católico podia ter a sua situação facilitada. No entanto, prefere ficar: “Obviamente que eu tenho a opção de escolher ir para um agrupamento não ligado a alguma religião. Mas é um pouco estranho fazer essa alteração de um agrupamento que me viu crescer e eu vi desenvolver, para um agrupamento que eu não conheço.”

O caminheiro André Paupério sublinha que, apesar dos elementos dos escuteiros já manifestarem maior interesse nas questões de género e orientação sexual, a ligação ao catolicismo trava a possibilidade de avançar ao ritmo necessário: “É sempre complicado mudar quando somos um movimento da Igreja.”

Sobre o futuro, as opiniões dividem-se. Juan Ambrósio refere que o CNE pode ter um papel importante na construção de um mundo mais inclusivo: “Temos de construir um mundo que possa verdadeiramente ser a casa de todos nós. E o CNE quer ser um player a sério deste jogo”. Paulo Pinto acrescenta: “Estamos muito felizes com este caminho que estamos a desenvolver.”

Na opinião de Inês, a inclusão vai ser cada vez mais uma realidade entre escuteiros. “Caso contrário, não haverá escutismo”, explica. André Paupério concorda, mas não se compromete com horizontes temporais “Não sei quanto tempo vai demorar. Mas pelo menos quero acreditar que um dia vamos ter condições minimamente aceitáveis para as pessoas da comunidade LGBT se sentirem bem dentro do movimento.”

Texto editado por Amanda Ribeiro

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