O dia em que conheci a Adelina
Há um grupo de 20 jovens a lutar diariamente para apoiar esta família. O sonho deles é que a Adelina possa voltar a casa ainda antes de morrer. Mas ninguém sabe o que fazer mais. E infelizmente eu também não.
Em Maio deste ano, a meio de uma conferência, reparei num grupo de jovens que parecia olhar-me fixamente. Primeiro achei estranho. Depois admiti que estava a ser paranóica e concentrei-me no discurso do orador, sabendo, pelo tom e tema abordado, que estava a poucos minutos de ser chamada a intervir.
O debate que se seguiu à conferência acabou por ser quente e enviesado, pelo que, no meio da irritação que se apoderou de mim, acabei por esquecer o tal grupo de miúdos. Mas, quando o moderador colocou ponto final naquele suplício e desci do palco, os jovens pareceram materializar-se à minha frente.
“Precisamos muito de falar consigo”, diziam-me com um ar desesperado que captou a minha atenção. E foi assim que conheci a Adelina.
A Adelina Águia era uma recém-enfermeira quando se mudou para África onde, naquela altura, os profissionais de saúde qualificados eram uma necessidade gigantesca. Além disso, as colegas tinham-lhe dito que lá poderia dar asas ao seu sonho de ajudar crianças desfavorecidas.
E em África a Adelina apaixonou-se não só pelas crianças que ajudava e pelo país, mas também pelo João, seminarista, que viu a vocação ir por água abaixo assim que os olhos bateram naquela que, pouco tempo depois, seria a sua mulher.
Durante alguns anos felizes, a enfermeira portuguesa dedicou-se ao casamento, ao trabalho e ao voluntariado. Tratava e cuidava de forma gratuita todos os que não podiam pagar e, assim, conta a sorrir, tinha sempre a casa cheia de frutos que os familiares dos que ajudava colhiam para lhe oferecer. O marido da Adelina acabou por dedicar-se ao comércio de café. Com o lucro do trabalho de ambos construíram a sua primeira casa e tudo correu bem até chegar a guerra colonial.
Nessa altura, a Adelina não virou costas e fez aquilo que melhor sabia: cuidar de todos. No espaço em baixo de casa, que outrora servia para os negócios do marido, a enfermeira portuguesa socorria agora todos os que vinham à procura do seu auxílio, independentemente do lado em que lutassem. E, curiosamente, durante o ataque de uma milícia, foi isso que lhe salvou a vida. Um dos elementos da milícia reconheceu-a como a enfermeira branca que cuidara do seu filho.
Viviam-se tempos tão conturbados em África que a Adelina e o marido decidiram mandar a única filha, nessa altura criança, para Portugal. Mas eles ficaram para ajudar quem conseguissem ajudar. Acabariam por retornar a Portugal pouco tempo depois, sem nada, mas com a certeza de que tinham feito o seu melhor e que tinham, de facto, salvado vidas na terra onde deixaram a única casa que conheciam como sua e que lhes foi usurpada pelo novo governo.
Ainda assim, no regresso a Portugal, com África no coração, não se deixaram abater e, para reerguerem a vida, deitaram mãos ao trabalho. Adelina começou a trabalhar num Centro de Saúde no Porto e arranjou um part-time na Ordem da Lapa. Isto tudo sem nunca ter deixado de ajudar todos aqueles que a procuravam e que, porque palavra puxa palavra, eram cada vez mais.
A filha do casal, entretanto cresceu e, quando começou a trabalhar, corria o ano de 1992, comprou a casa alugada em que os pais viviam. Era a sua forma de lhes devolver a casa que tinha ficado em África e da qual guardava tão boas memórias.
Mas a Adelina, sempre inquieta e sempre inconformada, nunca conseguiu virar costas à miséria. E numa altura em que a droga empurrava para a rua muitos jovens, decidiu construir um anexo na sua casa onde cuidava de sem-abrigo, mulheres vítimas de violência doméstica e onde, inclusivamente, recebia mulheres com complicações graves de saúde após a realização de abortos clandestinos. Ninguém pernoitava nesta casa, mas era aqui que recebiam cuidados de enfermagem e uma taça de comida quente.
Conta a Adelina que os sem-abrigo apresentavam feridas nos pés de uma gravidade como nunca voltou a ver. Mas, com os recursos que tinha, ela ia fazendo por eles tudo o que podia.
E por esta altura, imagino, já todos admiramos a coragem da Adelina que se recusou sempre a ignorar os mais frágeis da sociedade. Pena que os seus vizinhos nunca tenham sentido o mesmo e tenham começado a ameaçá-la. Mandavam o marido da Adelina voltar para “a terra dele”, insistiam que não queriam por ali “pretos” muito menos dos que traziam ao bairro os sem-abrigo que muitas vezes os incomodavam a pedir esmola ou comida e, pior ainda, mulheres que tinham abortado. Elas que morressem que era o castigo de Deus. Aquilo era um bairro de respeito, a Adelina pensava o quê?
É claro que uma mulher com a fibra da Adelina ignorou os avisos e as ameaças que, pensou sempre, nunca seriam efectivadas. Até ao dia em que, depois de mais um arrufo, um vizinho lhe atirou para cima um tacho com água a ferver. E o grupo de miúdos entregou-me até o relatório médico que comprova esta agressão e descreve as queimaduras com que a pobre Adelina ficou no corpo.
A partir daqui as coisas pioraram e, quando o João da vida da Adelina, o seu marido, morreu vítima de cancro, a perseguição dos vizinhos tornou-se implacável. E a Adelina, que foi forte toda a vida, sucumbiu ao desgosto e a uma depressão que a fez necessitar de internamento em 2011. Mas mal sabia ela que o pior ainda estava por vir…
Porque enquanto esteve internada a casa foi invadida e roubada. Levaram tudo, incluindo as portas e as janelas. A neta da Adelina, nessa altura, levou a avó para a sua casa, pequenina, e, aos poucos, foram tentando restaurar a casa vandalizada que, ninguém sabe como, uma vez que ninguém lá vivia, ardeu em 2021 num dia de chuva.
A neta da Adelina, que herdou a fibra da avó, tem três empregos no momento. E junta tudo o que pode para fazer as obras de requalificação que a Câmara Municipal do Porto exige na casa. A mesma câmara que lhes deu duas semanas para limpar os destroços após o incêndio e que ameaça tomar posse administrativa da casa, se as obras não forem iniciadas de imediato. Até agora conseguiu juntar 13.500 euros, que, infelizmente, não chegam para absolutamente nada.
A Adelina é hoje uma idosa, empurrada para a frente por uma neta que não sabe mais o que fazer porque, na Câmara do Porto, ninguém lhes dá uma resposta. Ela que só quer tempo para poder reabilitar a casa dos avós.
A Adelina, agora, mal come. Tem períodos de confusão mental. Só fala na casa que se transformou em cinzas. E a neta transformou-se em David contra um Golias chamado Câmara Municipal do Porto embalado pela força da especulação imobiliária.
Há um grupo de 20 jovens a lutar diariamente para apoiar esta família. O sonho deles é que a Adelina possa voltar a casa ainda antes de morrer. Mas ninguém sabe o que fazer mais. E infelizmente eu também não.
A casa de que vos falo fica no Largo da Lapa, número 37, no Porto. E, por não ter meios para ajudar, faço o que posso e divulgo a história, da qual tenho todos os documentos comprovativos, que este grupo de jovens voluntários me fez chegar num final de tarde em Matosinhos.
O final de tarde em que conheci a Adelina. A mesma Adelina que agora vos apresento na esperança de que, de alguma forma, a consigamos ajudar a voltar a casa.