O trono do Tour é de Jonas, o segundo rei da Dinamarca
Vingegaard tornou-se o segundo dinamarquês a conquistar o Tour, precisamente numa edição com forte peso escandinavo. Como? Com o valor de quem passou, em cerca de quatro anos, de uma fábrica de peixe a candidato a melhor ciclista do mundo.
Uma das primeiras coisas que se ouviu na Volta a França 2022 foi ‘Der er et yndigt land [Existe uma terra encantadora]”, hino da Dinamarca. Uma das últimas foi também essa mesma melodia. Porque a língua dinamarquesa marcou o início do Tour. E o meio. E também o fim.
A edição 2022, que arrancou em Copenhaga, teve Dinamarca em toda a extensão. Magnus Cort foi protagonista durante a primeira metade da corrida, tendo vencido uma etapa, vestido a camisola da montanha e levado o seu famoso bigode loiro às manchetes de todo o mundo – alguma imprensa escandinava aponta mesmo que muitos dinamarqueses já adoptaram o “bigode à Magnus”. Na segunda metade da prova foi o “festival” de Jonas Vingegaard, com excelência suprema em terrenos montanhosos, mas não só.
A Dinamarca tomou este Tour de assalto e Vingegaard, vindo de um país monárquico, tornou-se, no ciclismo, o “segundo rei da Dinamarca”, conquistando o Olimpo da modalidade 26 anos depois de Bjarne Riis ter desbravado esse trilho.
Na altura, foi um vencedor algo inesperado e, com Vingegaard, o cenário não foi assim tão diferente. Tal como Riis, não era um total desconhecido sem predicados alguns. Mas, também como Riis, tinha rivais teoricamente mais capacitados – Indurain era o rival da Dinamarca em 96, Tadej Pogacar foi em 2022.
O que separa Riis de Vingegaard é, para já, a aura que cada um tem no público em geral. O primeiro admitiu em 2007 que se dopou no ano do triunfo, enquanto o novo campeão do Tour não só não tem, até ver, polémicas à sua volta, como até conseguiu cultivar uma imagem gentil e distinta pela amabilidade e desportivismo – sobretudo no dia em que esperou por Pogacar, que tinha caído numa descida, quando minutos antes o esloveno não tinha feito o mesmo num pequeno percalço do líder.
Vingegaard foi também o homem que amoleceu o coração de muitos adeptos pela rotina que nem o cansaço extremo era capaz de quebrar. Acabada a etapa, fosse de montanha ou de sprint, as primeiras imagens do dinamarquês eram sempre iguais: Vingegaard de telemóvel no ouvido, a falar com as suas meninas, a mulher e a filha, que muitas vezes assistiram, do lado de lá da linha, aos momentos em que Pogacar, sempre afável e divertido, ia dar os parabéns a Vingegaard depois de cada momento de glória do dinamarquês neste Tour. E foram vários.
A fábrica
O campeão do Tour vem de um país no qual o ciclismo, mais do que um passatempo ou meio de transporte, é um modo de vida. Nove em cada dez dinamarqueses têm uma bicicleta e um deles é, há muitos anos, Jonas Vingegaard, alguém que curiosamente sonhava ser bancário.
Este contexto ilustra que Jonas esteve longe de nascer num ambiente desfavorável ao ciclismo, mas nem por isso teve o caminho facilitado. Jonas carrega a já famosa curiosidade de ter conciliado o início da carreira com o labor em mercados e fábricas de peixe. Foram cerca de quatro anos a mexer em peixe, antes de pedalar ao final do dia.
“A dada altura, senti que tinha de deixar a fábrica para dar o próximo passo no ciclismo. Tinha de acordar muito cedo nessa fase e acabava por chegar aos treinos muito cansado”, chegou a contar Vingegaard, cujo trabalho na fábrica era, justificava o pai, para “ensinar o que era a vida real e ter regras, disciplina e compromisso”.
O impacto desses anos no perfil pessoal e profissional do ciclista é impossível de medir com rigor, mas possível de imaginar: no Tour, o ciclista da Jumbo mostrou-se extremamente metódico, além de ter cumprido à risca as regras, disciplina e compromisso de não ser o líder da equipa, ainda que tivesse valor para tal.
Apesar de o Paris-Nice, antes do Tour, ter sugerido que Vingegaard estava em melhor forma do que Primoz Roglic, o plano da Jumbo era, em tese, apostar no esloveno e ter o dinamarquês como alternativa de luxo – tal como em 2021.
Mas Vingegaard resistiu a colocar-se em “bicos dos pés” e nem mesmo quando Roglic caiu o dinamarquês se chegou à frente de forma clara. Esperou e encarnou na perfeição o conceito de “alternativa” – e, depois desta vitória, possivelmente nunca mais terá de o fazer.
Mais Vingegaard ou menos Pogacar?
Uma das principais discussões deste Tour, adensadas nas últimas horas, é se este desfecho se deve a um menor fulgor do bicampeão Pogacar ou um nível inigualável de Vingegaard.
Possivelmente, a razão de como tudo isto se passou está entre as duas teses: porque é certo que Vingegaard foi um rival com um nível que o esloveno nunca teve, mas também é certo que Pogacar teve uma falha que nunca tinha tido.
Independentemente disso, Vingegaard foi o líder que Roglic não foi capaz de ser e trabalhou com a equipa à qual Pogacar não teve direito. Nas estradas francesas, o dinamarquês teve duas equipas: o “exército” da Jumbo e a “equipa” Wout van Aert. O ciclista belga fez um pouco de tudo: “rebocou” colegas de equipa, “destruiu” os melhores trepadores do mundo, partiu grupos em terrenos montanhosos, protegeu o líder em etapas traiçoeiras, serviu como engodo táctico mais do que uma vez e ainda andou em fugas como “ciclista satélite”, para ser útil nas subidas mais duras.
Ter ao lado alguém como o belga é estar sempre mais próximo de vencer, mas dificilmente alguém ousará dizer que Vingegaard foi apenas um produto de van Aert. Nas montanhas mais explosivas, nunca foi superado por Pogacar. Nas escaladas mais longas, conseguiu até superar o esloveno. E, para acabar com as “conversas de café”, fez questão de rolar a fundo no contra-relógio final, mesmo sem necessidade, para provar que não é inferior a Pogacar na luta contra o cronómetro.
Jonas Vingegaard colocou-se de pleno direito na discussão sobre quem é o melhor ciclista do mundo, algo que nunca será apenas obra de uma equipa forte. E parafraseando o próprio Vingegaard, este já não é o homem que cheira a peixe. Agora, cheira só a excelência.
Philipsen venceu em Paris
No último dia houve a já habitual etapa cheia de nada. O dia foi de passeio de bicicleta, brindes com champanhe, fotografias e sorrisos durante muitos quilómetros, até ao endurecer final da corrida, na preparação do sprint final em Paris.
O vencedor do dia foi Jasper Philipsen, que venceu pela segunda vez no Tour 2022 e garantiu que foi o melhor sprinter nesta edição, superando Fabio Jakobsen, que só venceu uma etapa, e Dylan Groenwegen, que venceu outra.