Indígenas LGBTQI+ vivem dupla discriminação, no coração da Amazónia

No coração da floresta da Amazónia, no Brasil, o fotógrafo e antropólogo Daniel Jack Lyons encontrou uma comunidade LGBTQI+ que vive em exclusão. “No pulmão do mundo, no país de Bolsonaro, muitos sentem-se duplamente discriminados: por serem indígenas e por serem queer.”

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Wendell, indígena e artista drag ©Daniel Jack Lyons
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323395-B8-002 001 ©Daniel Jack Lyons

De cada vez que um jovem da pequena cidade de Careiro, no estado brasileiro do Amazonas, decide revelar à família que é gay, não-binário ou trans, é quase sempre esperada uma tempestade. “Vivem no seio de uma sociedade ainda muito conservadora”, conta ao P3, a partir de Nova Iorque, o fotógrafo e antropólogo Daniel Jack Lyons, autor do fotolivro editado recentemente pela Loose Joints, intitulado Like a River. Muitos destes jovens são expulsos de casa pela família, outros perdem o emprego. “Cada história é diferente”, afiança o norte-americano. Vamos conhecê-las.

Tudo começou em 2019, quando, já em Careiro, Lyons conheceu o jovem Wendell. “Foi a primeira pessoa com quem convivi e, mais tarde, retratei”, recorda. Lyons desenvolve projectos que são profundamente colaborativos, que resultam de um trabalho conjunto e prolongado com o sujeito fotográfico. “Nunca fotografo alguém à primeira vista”, explica. “Tenho de conhecer bem a pessoa que vou retratar e essa tem de estar ciente do impacto que a publicação das imagens pode ter na sua vida.” Wendell, ciente de tudo isto, não se encolheu. Pelo contrário. “Para participar, tenho de ser fotografado em drag.”

O Wendell é indígena e artista drag. “Deixou de actuar publicamente, em Careiro, para poder ajudar a mãe, que adoeceu, no negócio familiar”, conta. “Ele receia que a transfobia possa causar danos ao negócio.” Para poder substituir a mãe na pequena banca de churrasco, Wendell retirou todos os indícios da sua actividade drag das suas redes sociais, deixou crescer a barba e optou por uma aparência que considera mais tipicamente masculina. “A mãe dele foi sempre uma presença de apoio”, diz Lyon. Porque nem todos têm essa sorte, Wendell transformou a sua casa num abrigo para pessoas LGBTQI+ que perdem apoio familiar e acabam nas ruas de Careiro. “Wendell tornou-se numa mãe da comunidade gay, trans e não-binária.”

Leo na corda / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Careiro / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Andira / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Genipa / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Wendell, indígena e artista drag / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Angel / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Crocodilo de Estimação / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Paulo / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
A filha do chefe 2 / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
No interior da Casa do Rio, em Careiro, Amazonas / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Eliza/ Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Sapato Violeta / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Casa do Careiro / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Peruca / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Eliel e Banzero / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Borboletas de Fogo / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
Comido pelas formigas / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons
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Leo na corda / Like a River, 2022, cortesia da editora Loose Joints ©Daniel Jack Lyons

Andira, também retratada por Daniel Jack Lyons, revelou que era trans durante a pandemia, em 2021. A reacção da família foi muito negativa. “Foi forçada a sair de casa dos pais e agora vive num abrigo para pessoas LGBTQI+, em Manaus, a única cidade próxima de Careiro onde é possível dar início a tratamento hormonal.” O norte-americano retratou Andira numa data muito especial, o primeiro dia da sua transição. “A Andira é poderosa. E está muito diferente, hoje. É um exemplo para outras mulheres trans.”

Violeta, outra das retratadas em Like a River, é activista trans e jornalista freelancer que se dedica sobretudo ao tema LGBTQI+ na Amazónia. “Tem tido dificuldade em encontrar trabalho”, afiança Lyons. Por isso, reside no mesmo abrigo de Andira, em Manaus.

Daniel Jack Lyon criou com todos os retratados um laço especial. “O meu relacionamento com pessoas trans e queer é especial porque a minha própria comunidade queer me salvou a vida, a certa altura da minha vida”, revela. “Quando chegas a um lugar e te conectas com outras pessoas queer, já tens inúmeras experiências de discriminação similares.” As que se vivem no país de Jair Bolsonaro são, talvez, mais severas do que muitas outras. “Existe uma discriminação muito forte contra a população indígena e contra pessoas LGBTQI+, no Brasil. Assim, as pessoas que eu fotografei sentem-se duplamente discriminadas.” Talvez, por isso, duplamente mais fortes. “Não é de estranhar que ali a comunidade seja extremamente unida.”

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Capa do fotolivro Like a River, de Daniel Jack Lyons, editado pela Loose Joints

Leo, que aparece retratado a segurar uma corda dentro de água, é activista ambiental e membro da comunidade LGBTQI+. “Ele tem um programa de rádio que toca temas como o direito à terra, a soberania, questões ambientais”, apresenta Lyons. “Ele e outros activistas indígenas mudaram-se de Careiro para Manaus, em 2021.” Esse foi o último ano em que esteve na Amazónia. Em Julho de 2022, Lyons expõe no festival Les Rencontres de Arles e lança, oficialmente, Like a River. “O tema é surpreendente para muitas pessoas. Mesmo no Brasil ninguém espera encontrar uma comunidade LGBTQI+ no coração da Amazónia. Para mim, que sou queer, não foi surpresa.”

Mas o que causa essa surpresa? “Vou dar um exemplo”, começa Lyons. “Quando regressava a Nova Iorque, depois da minha estadia em 2019, havia um enorme incêndio a lavrar na Amazónia. Nas notícias, no meu feed de Instagram, por todo o lado só se falava dos custos e consequências para o ambiente, para o planeta. Na conta de WhatsApp que partilho com os jovens de Careiro, todos falavam em pessoas desalojadas, aldeias a arder. Quando há um grande incêndio, o foco costuma estar nas pessoas, mas não quando decorre na Amazónia. Lá, o foco está sempre na floresta.” O projecto Like a River quer desconstruir isso; afinal, ele “comprova que existem pessoas complexas, interessantes” a viver no pulmão do mundo.

O fotógrafo e antropólogo norte-americano, que viveu em Moçambique vários anos, fala português proficientemente – ferramenta que se revelou essencial no estabelecimento dos laços com as pessoas que retratou. “Uma das minhas retratadas falava-me de quão difícil é deixar-se fotografar, sendo indígena e trans. O pouco controlo que tem, geralmente, sobre a forma como é representada deixava-a ansiosa. No meu caso, eu não tenho autonomia sobre a fotografia.” É um trabalho colaborativo, sublinha. É o retratado quem escolhe o local da sessão fotográfica, as roupas que usa, a pose que adopta. “Os retratos espelham a pessoa que eles querem que seja vista pelo mundo.”

Lyons despede-se do P3 com o poema de Thiago de Mello, que dá nome ao fotolivro, Like a River. “Como um rio, que nasce / de outros, saber seguir / junto com outros sendo / e noutros se prolongando / e construir o encontro / com as águas grandes/ do oceano sem fim”, leu. “É tempo de estas comunidades, que são como pequenos rios na Amazónia, chegarem ao oceano e serem vistas. Este livro é o meu contributo.”

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