Urge criar a Carta dos Direitos dos Adultos!

A definição de territórios é importante para que as crianças cresçam a perceber que o espaço não é todo dos mais novos. Pelo contrário, numa família, todos têm direito ao seu espaço, incluindo os pais.

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Numa casa com crianças, o centro da sala transforma-se num grande playground, com brinquedos espalhados por todo o lado DR/Stephen Andrews

Só adultos com direitos é que respeitam o direito de as crianças aprenderem a experienciar a dimensão da ressonância, essencial para sermos capazes de fazer o caminho a partir de nós próprios em direção aos outros. Urge criar a Carta Direitos dos Adultos!

1. Direito a conversarem cinco minutos sem serem interrompidos

Quando há crianças presentes num almoço de família ou com amigos, muitas vezes os meninos parecem tomar conta do espaço de conversa, interrompendo constantemente ou monopolizando de tal modo a conversa, que os adultos, apesar dos reiterados esforços, mal conseguem trocar cinco palavras seguidas.

É importante que as crianças não invadam todo o espaço de comunicação dos adultos, sendo habituadas, desde cedo, a esperarem pela sua vez para falar e também a escutarem. O tempo de espera e de escuta é estruturante para a socialização das crianças. Sendo de prever que na vida não vamos estar sempre no centro das atenções, monopolizando todo o espaço de comunicação, que tal aprendermos desde cedo a escutar os outros?

2. Direito a terem um espaço em casa

Em muitas casas, o espaço das crianças parece conquistar todas as divisões, desde a sala até ao corredor, passando pelo hall, pela cozinha e pela casa de banho. Claro que é normal que, havendo crianças em casa, a sua presença se faça notar, especialmente no seu próprio quarto, que deveria ser o espaço natural de brincadeiras. No entanto, paradoxalmente, por vezes é no quarto das crianças que estas menos brincam, tendo adotado como espaço preferencial o centro da sala, que se transformou num grande playground, com brinquedos espalhados por todo o lado, no chão, nos sofás, nas mesas e nas cadeiras. Os adultos lá tentam ajeitar-se o melhor que podem, desviando os pés dos brinquedos do chão e empurrando para o lado os objetos dos sofás. Com sorte, lá conseguem um lugar para se sentarem, antes de tropeçarem num novo brinquedo.

A definição de territórios é importante para que as crianças cresçam a perceber que o espaço não é todo dos mais novos. Pelo contrário, numa família, todos têm direito ao seu espaço, incluindo os pais. A outra questão, ainda mais relevante, é que as crianças não precisam de estar todo o tempo no centro da atenção dos adultos, constantemente acompanhadas nas suas brincadeiras. As crianças podem e devem brincar, durante períodos cada vez mais longos, sozinhas nos seus quartos ou com outras crianças, de modo a desenvolverem a autonomia, a interioridade e a socialização. E, sendo de prever que o mundo não vá girar todo em torno das crianças quando elas crescerem, que tal habituá-las desde cedo a não estarem o tempo todo no centro do mundo?

3. Direito a verem televisão

Numa casa com crianças vai sendo cada vez mais frequente só ouvirmos o Canal Panda e afins o tempo todo. As crianças monopolizam o comando e ficam demasiado tempo em frente ao ecrã e, mesmo quando não estão a ver televisão, querem ouvir aquele ruído de fundo alto e bom som que, ao fim de algum tempo, já exaspera os nervos dos adultos. Mas o mais grave é que os adultos perderam o direito de escolher programas que querem ver na televisão, ficando reféns das preferências dos mais novos.

Pois, tal como no resto, não parece positivo que as crianças cresçam a pensar que podem ter sempre o direito de escolha — há que aprender a negociar, a fazer concessões e a partilhar, sendo que a escolha dos programas de televisão é uma excelente oportunidade de aprendizagem. E, evidentemente, os adultos também têm o direito de ver o telejornal, filmes e outros programas de que gostem. E já que as crianças, quando forem crescidas, não vão poder escolher a fazer tudo quanto quiserem, que tal aprenderem desde cedo a partilhar a possibilidade de escolha?

4. Direito a terem momentos de paz e sossego

A hora de deitar as crianças tornou-se um momento difícil em muitas casas. Os meninos, já com birra de sono, esticam a hora de se deitarem o mais possível, levando os adultos quase ao limite. Depois da batalha campal, que termina com miúdos aos gritos e adultos exasperados, quando as crianças caem finalmente para o lado exaustas, os adultos também estão extenuados, já sem energia para o que quer que seja.

Neste caso, não é difícil perceber que é benéfico para as crianças deitarem-se cedo e descansarem o suficiente. Mas também é fácil entender que os adultos também têm direito a um tempo de qualidade depois de as crianças se irem deitar para lerem um livro, conversarem, verem um filme ou, pura e simplesmente, descansarem. Quando descansam, criam condições para serem melhores pais, mais tranquilos e disponíveis. E se, ao longo da vida, vamos ter de respeitar regras, que tal habituar as crianças a que existem alguns limites e que estes não devem ser permanentemente ultrapassados?

5. Direito a dizerem que não

Há muitas crianças com dificuldade em lidar com a palavra “Não” e, sobretudo, com a palavra “Não” que não se transforma em “Sim”, depois de uma aparatosa birra. Os adultos têm o direito a dizer que “Não”, porque são adultos e cabe-lhes definir regras para proteger a criança e ajudá-la a crescer, mas também têm o dever de dizer que “Não”, quando se justifica, para que as crianças percebam que há limites e que são estes limites que regulam o seu comportamento. Entre o autoritarismo e a permissividade, há um meio-termo que se pauta pela autoridade, relevante para a contenção da criança. Crianças sem limites são crianças que se sentem perdidas porque não sabem até onde podem ir e, como não sabem, vão sempre longe demais.

Os adultos têm o direito e o dever de exercer a sua autoridade, de forma sensata, calma e dialogante, demonstrando compreensão e respeito pela criança em crescimento, com firmeza e ternura. E já que a vida não vai correr sempre como queremos, que tal treinar desde cedo a capacidade de lidar com o “Não”, com a frustração e as contrariedades?

6. Direito a tomarem decisões

Vemos muitas vezes adultos a colocarem nas mãos das crianças decisões que ainda não lhes cabe tomar, porque não têm maturidade nem experiência de vida para o fazer. Há decisões que as crianças podem tomar, mas outras há que cabem aos adultos que, de forma ponderada, estão em condições de escolher aquela que lhes parece ser a melhor opção, no sentido de proteger e defender o bem-estar dos mais novos.

E o que é certo, é que as crianças respeitam e apreciam os adultos que são capazes de tomar decisões conscientes, justas e coerentes — e de as manter até ao fim. E se vamos ter de tomar muitas decisões ao longo da vida, que tal esperarmos por ter a maturidade necessária para fazermos determinadas escolhas estruturantes para o nosso futuro?


A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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