O medo como legado histórico
As promessas do pós-independência há muito que caducaram e o projecto de país continua a ser um esboço atrapalhado pela gula e a ambição de uns quantos. Resta-nos apurar, com a ajuda infalível do passar do tempo, quanta da responsabilidade atribuída a JES pelo fracasso desse projecto é, na verdade, responsabilidade de uma natureza política inerente ao funcionamento do próprio MPLA.
Quando o Público me convidou para escrever sobre José Eduardo dos Santos (JES) tremi um bocado por dentro. Como angolana nascida no pós-independência e no pós-27 de Maio conheço bem a sensação. Foi a mesma que senti quando participei pela primeira vez numa manifestação em frente ao Consulado de Angola em Lisboa, em 2008, para exigir o direito ao voto da diáspora. Revivi o mesmo tremor a cada vez que opinei publicamente sobre a prisão dos “15+Duas” em 2015. Repete-se um pouco a cada entrevista que dou sobre a situação política em Angola e é o mesmo tremor que escuto na voz de amigos e familiares, quando me fazem aquele telefonema preocupado, ou nos mais velhos que ainda hoje falam política baixinho. Pois bem. Esse tremor tem outro nome: medo. Esse é, para começo de conversa, um dos mais sólidos legados da era de José Eduardo dos Santos em Angola.
JES não só herdou como se empenhou em desenvolver esse Estado paranóico e controlador, conhecido pelo seu sofisticado sistema de informadores e tecnologias de vigilância. A chantagem funciona especialmente bem sobre as elites, que dormem apavoradas com a possibilidade de uma revolta popular ou a perda de privilégios. Muito cedo compreendi que a intimidação era uma das mais eficazes ferramentas do MPLA para conter o descontentamento. Tantas vezes essas ameaças se cumpriram, silenciando a imprensa e comprometendo a liberdade de expressão das vozes dissonantes.
Essa era a Angola de JES. Crescer num país assim cria uma estranha apatia em nós, uma sombra constante sobre as nossas certezas, um nervosismo que muitas vezes se desfaz em escapismo, ironia ou desespero.
Angola nunca foi um país fácil de governar. Com fronteiras artificiais impostas na Conferência de Berlim, em 1885, o país atravessou uma das mais longas guerras anticoloniais de África, seguida de uma resistência armada à invasão sul-africana. O país sobreviveu como pôde à terrível matança que resultou da tentativa de Golpe de Estado de 1977, ao mesmo tempo que mergulhava numa longa Guerra Civil. A guerra terminou oficialmente em 2002 e foi JES que fez o discurso e o caminho da paz e da reconciliação nacional. Mas depois da guerra começou o saque.
Sem pausas para encarar os traumas de uma História de violências, nem para conversar sobre as nossas várias confusões identitárias, fomos catapultados como nação para a histeria-neón do optimismo económico dos petrodólares. A corrupção tem sido deste então o maior inimigo do povo angolano, impedindo sistematicamente o aceder aos direitos mais básicos. Assim se foi adiando a possibilidade real de uma democracia. A História de violências, portanto, só continua.
JES é uma figura central na cultura de corrupção em Angola. Foi debaixo do seu nariz que a elite política do país e, consequentemente, da grande família do MPLA enriqueceu ilicitamente, deitando por terra uma oportunidade histórica para que o desenvolvimento social e económico viesse por fim corrigir décadas, séculos de opressão e miséria. É difícil perdoar tamanho desacerto.
Hoje, as promessas do pós-independência há muito que caducaram e o projecto de país continua a ser um esboço atrapalhado pela gula e a ambição de uns quantos. Resta-nos apurar, com a ajuda infalível do passar do tempo, quanta da responsabilidade atribuída a JES pelo fracasso desse projecto é, na verdade, responsabilidade de uma natureza política inerente ao funcionamento do próprio MPLA. Quantos desses podres vícios de poder já lá estavam quando em 1979 JES se tornou Presidente. Mais do que nunca, importará compreender o que muda e o que permanece depois da morte de JES. Talvez isso nos ajude a entender melhor a História e o país que temos. Para o bem e para o mal, a memória é curta mas a coragem é sempre nova.