“Quero que os meus netos sejam livres e que respeitem a liberdade dos outros”
O criador do Esporão levanta-se cedo para começar a ler os jornais do Japão ou de Singapura e termina o dia com a leitura das publicações da costa oeste dos EUA. Aos domingos envia para os 21 netos os textos mais importantes que leu durante a semana, pedindo-lhes comentários. Não quer impor as suas ideias, quer apenas que reflictam sobre o estado do mundo. E de forma livre.
Os jornalistas chegam a Reguengos 10 minutos depois da hora combinada, são encaminhados para uma sala e preparam-se para pedir desculpa pelo atraso. José Roquette surge ao fundo minutos depois com papéis na mão e começa, “Peço-lhes desculpa, mas levantei-me às 4h30 da manhã”.
Teve insónia?
Insónia?! Não, levantei-me a essa hora para ver o alinhamento dos planetas. Hoje dava-se [o alinhamento de Mercúrio, Vénus, Júpiter, Marte e Saturno]. Tenho um telescópio telecomandado a partir de casa, mas que levanta sempre um problema complicado que é a focagem, porque uma coisa é a gente querer ver a lua e outra é ver a nebulosa de Órion. São distâncias focais radicalmente diferentes. Ainda assim, consegui que me fizessem um adaptador para essa questão do foco, porque é crítico para quem – como é o meu caso – faz fotografia. É bem mais divertido ter os netos a olharem para aquilo que está a acontecer na calota polar de Marte, nas crateras da lua ou outra coisa qualquer.
De onde vem esse interesse pela astronomia?
Vem desta minha tendência de querer saber mais sobre as coisas que me parecem importantes, entre elas o lugar deste nosso planeta no universo. É um desejo de entrar pelo espaço fora. O nosso sistema solar está numa galáxia pouco importante. A vizinha Andrómeda é uma galáxia muito maior do que a nossa Via Láctea. Na nossa galáxia, estamos no chamado braço de Órion, que é muito na periferia. Quando temos condições de visibilidade perfeita e conseguimos olhar para o centro na nossa galáxia, vemos um povoamento de estrelas enorme. E foi o desejo de conhecer esse centro que me levou para a astronomia.
E conseguiu hoje fotografar o alinhamento dos planetas?
Hoje não porque, com a neblina e uma humidade relativa do ar à volta dos 80%, não dá para ver nada com nitidez. Ainda vi umas coisas muito difusas, mas foi só isso. Paciência, dentro de dias vão aparecer fotos do evento. Mas, independentemente destas questões da astronomia, levanto-me sempre cedo por outras razões.
Estamos curiosos.
Quando o dia nasce em Portugal, já vem com um desfasamento horário, a partir do que aconteceu na Ásia, de cinco, seis ou oito horas, pelo que começo todos os dias por ler o Tokyo Times e depois o Singapore Newspaper. Passo para a imprensa na nossa área geográfica e termino o dia com leituras do San Francisco Chronicle e do Los Angeles Times.
Tem essa preocupação diária?
Não é preocupação, é uma necessidade, porque é a única forma que tenho de absorver o tipo de informação de que necessito para apoiar as decisões que tenho de tomar. Hoje em dia, no meio desta volatilidade diária, os empresários precisam de ter informação de base incomparavelmente mais alargada. Mas há uma razão adicional para fazer isto todos os dias. Tenho 21 netos, três bisnetos e uma bisneta que nascerá em breve. E, todos os domingos, envio para os meus netos alguns textos que fui lendo ao longo da semana e que considero serem os mais relevantes para a discussão de um conjunto vasto de assuntos para a nossa vida colectiva. E depois fico à espera dos comentários deles.
Que tipo de textos são esses?
Artigos de opinião, estudos científicos em diferentes áreas, relatórios, ensaios, estudos prospectivos sobre economia e gestão, reflexões políticas e filosóficas. Textos que nos obrigam a pensar.
E os seus netos reagem?
Claro. E depois fico a saber quais são os temas que mais os preocupam. E isso dá-me uma ideia para perceber que caminhos eles querem seguir.
Isso é um avô a tentar orientar o pensamento dos netos?
Não, isso nunca, bem pelo contrário. Há uma coisa que para mim é inviolável: a liberdade. A minha liberdade e a liberdade dos outros, neste caso a liberdade dos meus netos. Se eu os levasse a pensar como eu penso e a ver o mundo como eu vejo, estaria a fazer um atentado à liberdade deles. O que de mais importante uma geração tem para transmitir às outras é a noção de liberdade: quero que os netos sejam livres e que respeitem a liberdade dos outros.
Enquanto sociedade nunca tivemos hábito de cultivar um conceito de liberdade tendo em conta o outro.
E de cada vez que apareceu uma oportunidade para cultivarmos essa dimensão, durava pouco tempo. Esse é um problema: se a nossa liberdade não se estender à liberdade dos outros, não vale grande coisa.
Está hoje preocupado com esta questão?
Mais do que preocupado, estou em alerta para uma coisa que tenho como um dos calcanhares de Aquiles das democracias liberais e que é considerar-se que as questões materiais são mais importantes do que a cultura e o envolvimento cívico. Já tenho idade e vida suficientes para saber que quando uma civilização passa para primeiro plano as questões materiais perde tudo aquilo que é essencial.