A coisa terrível que acontece às crianças que não são amadas
Os pais podem não conseguir compreender a natureza das diferenças — e o desconhecido assusta. Podem ainda ter receio de que aqueles que amam sejam pisados, ostracizados e excluídos por uma sociedade que faz o elogio da normalidade.
Quero muito falar-vos do Barnaby. Ele nasceu diferente de todas as outras crianças (explico melhor adiante) e isso deixou os pais muito desconfortáveis. A mãe e o pai de Barnaby eram pessoas absolutamente comuns. Tinham uma casa simpática, dois filhos e um cão. O casal orgulhava-se desta vida previsível e segura que lhes permitia ter contas pagas, frigorífico cheio e um selo social de normalidade. A chegada do terceiro filho veio, contudo, alterar a ordem natural da casa dos Brocket.
Um diagnóstico ou uma identidade que distingue os nossos filhos dos demais provoca quase sempre surpresa. Os pais podem não conhecer bem a natureza dessa diferença — e o desconhecido assusta. Podem ainda ter receio de que aqueles que amam sejam pisados, ostracizados e excluídos por uma sociedade que faz o elogio da normalidade. São sentimentos compreensíveis.
O choque inicial também pode envolver alguma dor. Há um filho idealizado que se perde quando recebemos a notícia da diferença. Porque esta circunstância não é apenas sobre a criança que geramos — é também sobre a imagem que nós temos (ou queremos transmitir) de nós próprios. Ser mãe ou pai de um menino como Barnaby pode significar sair do clube das famílias ditas normais — e essa súbita exclusão pode provocar sentimentos de pesar, depressão e não pertencimento. A minha experiência com famílias atípicas diz-me que, na maior parte das vezes, a surpresa, o medo e a dor tendem progressivamente a ser substituídos por aceitação, orgulho e até activismo. Mas nem sempre é assim. Infelizmente.
Barnaby é uma criança que flutua. Desde o nascimento foi assim: o rapaz desafia inexplicavelmente a lei da gravidade. Os pais tiveram grande dificuldade em adaptar-se a essa característica: esconderam-no dos vizinhos, recusaram-se a matriculá-lo na mesma escola dos outros filhos e sentiam vergonha de ter um menino assim, incapaz de ter os pés no chão.
Um belo dia, a mãe cansou-se de acolher tanta diferença dentro de casa e esvaziou, intencionalmente, os sacos de areia que Barnaby trazia dentro da mochila para se manter em terra. Sem o peso que trazia às costas, o menino flutuou, flutuou, até dar com um balão onde estava um casal de lésbicas muito acolhedoras. Este foi o primeiro encontro mundo afora com pessoas que, como ele, foram escorraçadas pelos pais.
A história de Barnaby é ficcional. Ele é a personagem principal do livro infanto-juvenil A Coisa Terrível que Aconteceu a Barnaby Brocket (Bertrand, 2013), escrito por John Boyne e ilustrado por Oliver Jeffers. Li-o à minha filha mais velha recentemente, é um belo livro sobre um tema difícil. Senti um travo na língua ao narrar a cena — leio em voz alta — de uma mãe que quer fazer desaparecer o próprio filho, apenas por este ser diferente.
A minha filha de nove anos, apesar de reprovar o comportamento da senhora Brocket, aceitou o facto de o desamor fazer parte do espectro de emoções maternas. Ela tem razão. É uma resposta afectiva rara, mas existe. Há pais que deixam de falar com os filhos quando sabem que têm uma orientação sexual não normativa. Ou que escondem filhos com deficiência. Ou que os deserdam após a cirurgia de redesignação de sexo. E, por isso, a rejeição parental não deve ser ignorada pelos produtos culturais, mesmo aqueles dedicados aos mais jovens.
O escritor irlandês John Boyne, que já tinha agarrado um assunto doloroso quando escreveu o best-seller O Rapaz do Pijama às Riscas, aborda o abandono materno com humor e delicadeza. Não tenham medo de trazer estes temas para dentro de casa. Os nossos filhos condicionarão o conceito de normalidade da próxima geração. Se forem mais inclusivos e acolhedores, talvez haja menos pais como os Brocket na sociedade que ajudarão a construir.