O que acontece na empresa, fica na empresa
Eu, a pessoa aparentemente mais tranquila, fiquei próxima da janela com a menina ao colo, enrolada num casaco que Dora, a secretária, tinha fornecido como roupa para a menina. Pela janela avistei a ambulância. Eu e a menina vimo-la estacionar em cima do passeio e duas mulheres saírem do veículo, apressadas. De nada lhes valeria a pressa, agora.
Quando ouvimos, por fim, a ambulância a aproximar-se do edifício do escritório, a mãe do recém-nascido tinha acabado de perder a consciência. A médica encontrava-se ajoelhada no chão junto dela, fazendo várias manobras de reanimação. A secretária e a contabilista choravam alto, a tesoureira permanecia no corredor, o mais afastada da cena, e a Sr.ª Directora e a sub-chefe estavam lado a lado, sem se mexerem, não querendo atrapalhar.
Eu, a pessoa aparentemente mais tranquila, fiquei próxima da janela com a menina ao colo, enrolada num casaco que Dora, a secretária, tinha fornecido como roupa para a menina. Pela janela avistei a ambulância. Eu e a menina vimo-la estacionar em cima do passeio e duas mulheres saírem do veículo, apressadas. De nada lhes valeria a pressa, agora. Estava em crer que tínhamos perdido a mãe da bebé. A menina puxou-me os cabelos na nuca com a mãozinha inocente. Estava a brincar, satisfeita. Fiquei tão angustiada.
A chefe foi abrir a porta que dá acesso à rua e logo entraram as duas mulheres, dirigindo-se de imediato ao corpo exposto no chão da sala. A minha percepção estava certa, não havia nada a fazer com a mãe da menina, excepto arrumá-la num grande, enorme saco. A minha tristeza tornou-se indescritível. As senhoras do Serviço Nacional de Emergência Médica justificaram a demora com o tráfego. A médica, revoltada, disse que era inadmissível, que tivessem enviado outra ambulância, que iria apresentar queixa, isso era certo. As mulheres não se aventuraram a desculpar-se mais. Outra ambulância fora pedida mas, pelos vistos, algo falhara. E desse erro, resultara a perda de uma vida. É a vida ou, melhor seria dizer, é a morte, acontece.
Depois, fizeram várias perguntas sobre a falecida, a médica respondeu a todas as questões com assertividade. Informaram que iam chamar um transporte alternativo, os veículos daquele serviço não transportam cadáveres. Contudo, a ambulância serviria para levar a menina, tinha de ser vista no hospital pela Pediatria. Pensei no destino da criança, como seria entregue, primeiro, às mãos curiosas dos médicos, depois, quando se fartassem de analisá-la, entregá-la-iam a uma assistente social e, mais tarde, seria entregue a uma qualquer instituição; eternamente vetada ao amor filial. Veio então uma das médicas do serviço de urgência tentar tirar-me a menina do colo, fitando-a com atenção.
A Sr.ª Directora disse que “por hoje estão dispensadas do trabalho, eu e a chefe ficamos aqui com uma das médicas até que chegue o transporte alternativo para levar o corpo”. Aproximou-se então de nós, de mim, da médica e da menina, a nossa tesoureira. Não fazia ideia do que pretendia. Ela própria parecia não saber. “Posso ir até ao hospital com a bebé?”, perguntei num ímpeto à médica, antecipando-me a qualquer intenção da tesoureira. “Tem algum grau de parentesco com a criança?”, perguntou a médica. Menti, irreflectidamente: “Sim, sou a tia”. Só Francis, a tesoureira, ouviu o que dissera e não reagira, apenas me lançou um olhar intrigado. Parecia pensar o que tantas vezes dissera em voz alta: “O que acontece na empresa, fica na empresa.”
Afastou-se e pegou na pasta, preparando-se para sair. “Ainda bem que está aqui alguém da família”, disse a médica. Deixei o casaco pendurado nas costas da cadeira e segui atrás da médica com a menina ao colo. “O que acontece na empresa, levamos connosco”, pensei.